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Pandemia chega à literatura brasileira

'Corpos Secos' é um romance escrito por quatro autores, dois homens e duas mulheres, que a Alfaguara lança

Por André Cáceres
Atualização:

Um país em ruínas, uma tragédia sanitária, uma epidemia generalizada, violência em massa – se o Brasil retratado no romance Corpos Secos já não estava tão distante do Brasil de verdade, ele se tornou perturbadoramente semelhante à vida real com o avanço do coronavírus. 

Publicado pela editora Alfaguara e escrito a oito mãos por um time de autores celebrados – Luisa Geisler, Marcelo Ferroni, Natalia Borges Polesso e Samir Machado de Machado –, esse é talvez o primeiro grande romance da pandemia, já com seus direitos audiovisuais vendidos para a RT Features, para a produção de um filme ou uma série.

Os escritores Natalia Borges Polesso,Samir Machado de Machado, Luísa Geisler e Marcelo Ferroni Foto: Tadeu Vilani/Editora Alfaguara

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No livro, o uso de um agrotóxico em fazendas no Mato Grosso provoca uma mutação no vírus Baculovirus anticarsia, que começa a infectar pessoas, transformando-as em “corpos secos”, ou seja, criaturas vagantes ou mortos-vivos sedentos por sangue que podem contaminar suas vítimas, espalhando ainda mais a doença.

Apesar das coincidências com a atual situação no mundo real, essa distopia foi imaginada muito antes da atual situação, em meados de 2018, durante uma conversa entre Ferroni e a editora Luara França, que coordenou o projeto. Corpos Secos conta com quatro linhas narrativas paralelas, cada uma conduzida por um dos autores separadamente, e então amarrada por meio de reuniões virtuais. “Foi muito colaborativo, não teve rixa. Funcionou um pouco como uma sala de roteiro”, comenta Ferroni acerca do processo criativo pouco usual para esse livro. “Conversamos por WhatsApp, e-mail e fizemos poucas reuniões por Skype, tivemos apenas uma reunião presencial”, lembra ele. O contato virtual entre os quatro autores foi importante, ele explica, para padronizar aspectos formais da obra e fixar alguns pontos em comum para as narrativas, além de estabelecer como os personagens de cada escritor se relacionariam no decorrer da trama. 

“Eu não sou tão fã de zumbis, mas sou muito fã de pós-apocalipse”, admite Samir, que também aproveitou a peculiaridade do processo de escrita de Corpos Secos. “Foi a primeira vez que me senti trabalhando em um projeto comercial, pensando: ‘Vamos fazer uma trama divertida, deixando pontas soltas para uma continuação… Foi muito divertido e libertador, não só pra mim”, comemora. Natalia imaginava que seria muito mais difícil lidar com a parceria múltipla, mas afirma que “surpreendentemente, a gente se deu muito bem”, o que, de acordo com ela, não seria possível sem a mediação de Luara. “Foi um processo bem regrado até do ponto de vista de costura e construção de diálogos, mas livre a partir do momento que escolhemos nossos personagens e como iríamos narrar.”

Já Luisa conta que, mesmo estando em um conjunto de autores, cada um pôde imprimir o próprio estilo na prosa do romance, mesmo se tratando de um livro diferente do que ela está acostumada a produzir. “Sempre parti do princípio que escrevo livros que eu gostaria de ler e isso nunca mudou. Se tem algo que eu gostaria de dizer, eu vou dizer. Não tenho um formalismo de escrever determinado tipo de livro, e acredito que consegui colocar minha voz autoral nesse também.”

Embora o romance não esconda a influência de clássicos como Eu Sou a Lenda, de Richard Matheson (o nome da doença no livro é Síndrome de Matheson-França), A Noite dos Mortos-Vivos, de George Romero (cujo sobrenome é o mesmo de um dos coadjuvantes) e O Enigma de Andrômeda, de Michael Crichton (livro folheado por um protagonista em uma cena), a inspiração também veio do folclore brasileiro.

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“A lenda varia conforme a região”, conta Samir, que descobriu os corpos secos. “Tem no Mato Grosso, no interior de São Paulo, em Minas e no Nordeste. O que o Câmara Cascudo catalogou foi que o corpo seco é uma pessoa tão má que, quando morre, nem o céu, nem o inferno querem o corpo dela, então ela fica vagando.”

As quatro tramas que se alternam e entrelaçam variam entre jornadas mais aventurescas e dramas familiares mais contidos, como é o caso dos trechos escritos por Natalia. “Pensei que, por contraste, seria bom começar com essa relação entre irmãos, algo mais íntimo, num apocalipse em família, que é o que algumas pessoas estão tendo que viver agora. Com quem você vai estar no fim do mundo?”

O protagonista mais claro do romance é Mateus, um garoto infectado pelo vírus sem demonstrar sintomas, dando uma esperança de cura – tema recorrente em histórias do gênero, como o game The Last of Us (2013). Mantido sob vigilância em um hospital fortificado em São Paulo enquanto seu caso é estudado pela dra. Sandra, ele deve ser escoltado pela policial federal Tulipa até uma base militar no Rio de Janeiro, onde os cientistas sobreviventes poderão trabalhar em um antídoto para a “corpo-secagem”. 

Uma das linhas narrativas mais impactantes é a de Murilo, meio-irmão de Mateus, que começa como apenas uma criança e vai se transformando aos olhos do leitor, endurecendo diante da violência que testemunha. Esse ponto de vista infantil, narrado em primeira pessoa, proporciona alguns bons momentos de experimentação formal com fluxos de consciência. 

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Talvez a mais movimentada dentre as tramas é a de Regina – o elenco do romance é recheado de personagens femininas fortes e bem construídas, aliás. Ela vive em uma fazenda rodeada por seus serviçais e mais ou menos alienada, até que os corpos secos destroem sua tranquilidade e ela se vê em uma fuga desenfreada com toques que vão de Mad Max aos roteiros catárticos de Tarantino. 

“A ideia era romper com essa rigidez literária. Explorar caminhos que a literatura pode tomar. Ela pode ser pop, ter um lado de entretenimento e ao mesmo tempo dizer coisas. É um desafio da literatura e uma coisa que os quatro autores pensaram em fazer”, afirma Marcelo Ferroni, que corrobora a ideia de séries como The Walking Dead, em que os zumbis costumam oferecer muito menos perigo do que os vivos em tramas do tipo. “Conforme eu ia escrevendo, ia naturalmente tendendo a deixar o humanos não contaminados mais cruéis do que os corpos secos. É um reflexo da situação que a gente vive, um egoísmo atroz, uma falta de união, cisão pra tudo, violência injustificada. As pessoas só pensam em como tirar proveito da situação.”

Diferentemente de outras histórias de zumbis, Corpos Secos “é um livro pensado como fenômeno brasileiro”, analisa Luisa. “Porque o Brasil tem legislações diferentes para agrotóxicos do que toda a América Latina, o uso é muito mais pesado aqui do que no resto do mundo. Então, pensar uma distopia no Brasil é pensar o que é um problema no Brasil. Temos narrativas dos Estados Unidos e da Europa com problemas específicos de lá, mas que nãos se aplicam aqui.”

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Essa identificação imediata com o público brasileiro é uma vantagem para Natalia. “Vai descolonizando nosso imaginário. Toda vez, nesses filmes de apocalipse ou catástrofe, sempre os EUA que vão salvar o mundo, e estamos vendo nessa pandemia que eles não estão fazendo nada disso.” 

Para Samir, é importante que essa “descolonização” ocorra em um livro com linguagem acessível. “Entretenimento popular é uma das coisas mais políticas que existem. É importante ter uma literatura de entretenimento produzida por e para brasileiros”. 

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