Os Vivos

"Detrás da janela, pichada no edifício à frente, a inscrição ‘Não existe amor em SP’. É improvável que se morra por alguém na cidade?"

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Por Felipe Franco Munhoz
Atualização:

Há cortinas de caracteres – grandes páginas de jornal – interpondo o palco. Por frestas, divisa-se um quarto simples de hotel. Janela coberta, luzes acesas; malas; Gabriel, vestido (à exceção da ruça máscara, ao queixo), sentado na cama, atrapalha-se para folhear tanto o jornal O Estado de S. Paulo, de 26 de dezembro de 2021, quanto um exemplar antiquíssimo do jornal The Daily Express, de 7 de janeiro de 1904. Gretta, seminua (apenas o mosaico terracota e salmão da saia que usara no dia pregresso), perambula pelo cenário.

Gabriel (desconversando) – Nada.

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Gretta – Que não seja – A história do meu – Meu Deus – Bebi demais. Aqui. (Indicando o centro de sua testa) Um ponto craniano de exclamação: aqui: enterrado aqui. Deve estar visível, saliente; autógena tatuagem. Você trouxe paracetamol?

Gabriel – Qual história?

Com a pergunta brusca, proferida uma oitava esganiçada acima de seu tom habitual de voz, Gabriel tentou a execução, notável fracasso, do simulacro do esquecimento; levantou-se, então, abandonando os jornais, para – do justo bolso da calça (traje, também, do dia pregresso) – puxar o receptáculo, que sempre carrega, repleto de comprimidos.

Gretta – Nada. Sei. Qual história? Sei. (Gabriel entrega o remédio) Obrigada. Eu não esperava escutar Travessia, entende? Soa quase inverossímil.

Gabriel – O despertador um eco nas aurículas – e você despejando adjetivos: taciturno, ríspido, lacônico. Isso tece a carapuça.

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Gretta – Depois das cantigas, depois daquele funk, Travessia – distante e próxima, entoada em ambiente paralelo – mexeu comigo. A letra vacilante às incertezas do intérprete. Fiquei chorona.

Gretta infligira adjetivos precisos. Evidente: ainda exausto, Gabriel preferia, agora, evitar tal assunto incômodo; na madrugada anterior, sob lençóis, contra trêmulos efeitos do ar-condicionado (o quarto gélido, térmica exigência da apartada e adormecida companheira), ele sentiu desmaiar-lhe, vagarosa, a alma.

"Com a pergunta brusca, proferida uma oitava esganiçada acima de seu tom habitual de voz, Gabriel tentou a execução, notável fracasso, do simulacro do esquecimento" Foto: REUTERS/Clodagh Kilcoyne

Vagarosa; enquanto ruminava indagações acerca do passado inacessível de Gretta – quais impactos, mais, ele desconhecia?, quais estrelas irrompiam, secretas, no cofre que se projetava imenso? – e, junto às indagações, formulava esplêndidos raciocínios acerca da vida e do tempo e das angústias do ser humano. A exaustão: da festa; a exaustão: de seu próprio cérebro.

Gabriel – Convenha-se: ambos acordamos mais para o agressivo do que para o agradável.

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Gretta – Pós-excesso. Qual almoço familiar, de Natal, estende-se para além das três da manhã? Não poderíamos ter permanecido em nosso micronúcleo interiorano? Protegidos, nós e as crianças; porém: viemos para esta São Paulo sem amor. Desde o camarim feminino improvisado no banheiro – aglomeração com as suas tias – até a espécie de pista-discoteca, tum-tá-tá-tum-tum-tá, no meio da sala – aglomeração com as pernas e os sapatos. Para completar, ao término da sobremesa, ressoaram duas tosses. Protocolos?

Gabriel – Todos vacinados. Vários, minhas tias inclusive, já tomaram a terceira dose. Você reclama do excesso; mas comentou, debochada, que, logo, eu compraria um escafandro para você, não comentou?

Gretta (sarcástica) – Menti. Perdão. Você não comprou, suponho, porque, nesse caso, eu demoraria – o quê? – quatro ou cinco horas para me trocar. 

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Gabriel – E pior: você reclama do excesso; mas rebolou, frenética, na pista-discoteca. E você sabe: eu preferiria ter caminhado no Ibirapuera. Eu, lá – e imaginando quantos graus fazia no topo do obelisco, no topo das cabeças do Empurra-empurra. 

Gretta – Eu, lá, rebolando – e analisando os homens risíveis: portadores de absorventes nas axilas, debaixo das camisas, para não imprimirem rodelas de suor. Você preferiria: futuro do pretérito, não realizado. A reunião familiar foi uma opção. 

Gabriel – Importante para as minhas tias, Gretta.

Pausa. 

Gretta – Copos foram enchidos com uísque, prescrição médica. 

Gabriel – Tratamento precoce? 

Gretta – Tenho a impressão de que: piada. 

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Gabriel – Riram? Por educação? Educação? 

Gretta – Banho. (Despindo a saia) Pretendo passear, espairecer; volto às cinco para o ônibus. E você? Ibirapuera? Tomie Ohtake?, a retrospectiva de...? 

Gabriel – Tunga. Pretendo visitar algumas livrarias: a Vila, da Fradique; a Ria, da Marinho Falcão; a Mandarina, da Ferreira de Araújo. Ontem, antes da festa, em um sebo, aberto, !, da Teodoro, garimpei: jornal irlandês, arcaico. (Mostra o jornal; e mostra outro jornal) Ao chegarmos da festa, na recepção, encontrei: jornal de hoje; acabei de ler, nele, um conto sobre multidões, olhos, reflexos. (Apontando para a janela) Detrás da janela, pichada no edifício à frente, a inscrição Não existe amor em SP. É improvável que alguém morra por alguém nesta cidade? Para mim, o amor em São Paulo significa um emaranhado arquitetônico – hermético e permitindo, simultaneamente, infinitas portas – de caracteres. (Gretta suspira) Improvável, deveras; no entanto...

Gretta, impetuosa, desaparece no banheiro. Gabriel desiste da frase e mergulha nos jornais: no contemporâneo, para regressar a ler ficção; no antiquíssimo, para vislumbrar fatos (a manchete principal: iminente conflito entre Rússia e Japão) e ideias que já se tornaram, em geral, irrelevantes. Começa a tocar Milton Nascimento: ‘Travessia’; música e ruídos do chuveiro misturam-se. As cortinas de caracteres, primeiro, sem a hipótese de qualquer fresta, cerram-se na totalidade; subsequente, são – movimentos de maquinário invisível – amassadas: amassando, com elas, o palco e seus personagens.

* FELIPE FRANCO MUNHOZ É JORNALISTA E ESTREOU NA LITERATURA COM ‘MENTIRAS’. PUBLICOU TAMBÉM ‘IDENTIDADES’, E É AUTOR DA PEÇA ‘IDENTIDADES 15 MINUTOS’

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