'O racismo nos deixou sem história e sem memória', diz a escritora afrofuturista Lu Ain-Zaila

Escritora é uma das principais vozes do movimento estético que mistura ficção científica e elementos da cultura africana

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Por André Cáceres
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“A ignorância plantada pelo sistema foi a grande pandemia a assolar o mundo, e esse país ainda mais.” A frase, que parece ter sido escrita de março de 2020 para cá, é na verdade um trecho do livro Ìségún (Monomito Editorial), publicado no fim de 2019 por Lu Ain-Zaila, nome de pluma da escritora e pedagoga fluminense Luciene Marcelino Ernesto. Apesar de antever o ano seguinte, a autora não tenta prever nada: sua obra refunda o imaginário do futuro, de modo a deslocar o protagonismo do porvir para as pessoas de pele preta. “É estranho num país com metade da população negra eu saber mais sobre a imigração italiana do que da diáspora africana”, afirma Ain-Zaila em entrevista ao Estadão, de sua casa em Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense. “O movimento afrofuturista surge de uma necessidade de representação negra a partir de seu próprio olhar. A afrocentricidade traz a perspectiva de que a pessoa que vai produzir o conteúdo é negra, para que se possa criar uma tradição de literatura, cinema e artes de modo geral.”

A escritora e pedagoga Lu Ain-Zaila, uma das vozes do afrofuturismo no Brasil Foto: Wilton Junior/Estadão

A autora já havia publicado um conto em 2007, mas passou a se dedicar mais seriamente à escrita após visitar a Bienal do Livro de 2015 e se frustrar com a escassez de obras protagonizadas por negros. Desde então, publicou três distopias, (In)Verdades (2016), (R)Evolução (2017) e Ìségún (2019), e a coletânea de contos Sankofia: Breves Histórias Afrofuturistas (2018).  “O afrofuturismo se dá mais no campo da elaboração do que da própria obra, porque não podemos pensar nos limites da obra. A construção da narrativa sempre tem elementos da cultura negra, isso é indispensável para que se construa essa nova linha de tradição literária”, explica ela. “Ele sai do lugar canônico para reconhecer que existem outros lugares de fala, outras formas de elaborar histórias, e queremos contar essas histórias.” É por isso que, em suas narrativas, Ain-Zaila sempre insere elementos da cultura africana, como palavras em suaíli e iorubá, conceitos das mitologias africanas e situações protagonizadas por personagens negras. Em Ìségún, por exemplo, essas questões estão colocadas desde o título, que significa “reverência aos antepassados” em iorubá. Na trama, que se passa em um futuro indeterminado, em uma cidade litorânea fictícia da costa brasileira, a detetive ambiental Zuhri investiga o assassinato do Dr. Diop, um cientista que desenvolvia uma espécie de filtro antipoluição para fábricas.  A prosa de Ain-Zaila é sinestésica: narrado ao som de sambas clássicos e em meio ao odor do lixão que envolve a Cidade Alta e a Cidade Baixa, Ìségún fornece, aos poucos, pistas de que uma corporação bilionária está por trás não apenas dessa morte, mas de uma conspiração muito maior que envolve a eliminação da militância ambientalista. Para evitar uma catástrofe ainda mais grave, a detetive acaba tendo que reatar laços com sua ancestralidade, e essa é uma tônica no afrofuturismo: a mescla de um futuro tecnológico com um passado primordial. Ain-Zaila classifica o livro como “cyberfunk”, variação do cyberpunk, cujo principal autor, William Gibson, de Neuromancer, cunhou uma frase que ilustra a obra dela: “O futuro já chegou, só não é bem distribuído”. Em Existência, um dos contos de Ain-Zaila, uma equipe de astronautas terráqueos vê suas mentes serem dominadas por uma forma de vida alienígena que se organiza como uma coletividade homogênea. A antropóloga Adimu, última da equipe a ser atacada, consegue resistir à invasão mental por meio de suas memórias: “Fecho meus olhos e tento fazer um filme de adeus ao que sou: ancestralidade, vivências sociais, pertencimento histórico, novas ideias e concepções a partir do que conheço, ou acredito conhecer, sonhos a realizar, arrependimentos”. Ao ser confrontada com a lembrança da enorme diversidade da vida na Terra, a espécie extraterrestre perde sua capacidade de homogeneizar os humanos. Esse é um exemplo de como, na literatura de Ain-Zaila, a multiplicidade de estilos de vida, raças, culturas e credos que caracteriza a humanidade torna-se também um elemento narrativo para imaginar um futuro diferente da visão colonialista e eurocêntrica que regeu a ficção científica por todo o século 20. “O racismo causou uma fratura ontológica que nos deixou sem história e sem memória”, defende Ain-Zaila. “O que eu busco trazer com a minha literatura é isso de volta, uma realidade em que possamos ter referências que nos digam de onde nós viemos. Não temos como construir uma realidade ou um futuro se não sabemos quem somos.” Para ela, outros modos de contar histórias são importantes justamente para evitar um pensamento homogêneo que nos reduz a meros reprodutores de clichês. “Busco trazer o olhar sobre como outros povos são afetados por essas situações. A nova literatura de ficção científica vem construindo isso. Não só negros, mas chineses, LGBT, mulheres brancas… Essas literaturas mostram como outras pessoas são afetadas por essas narrativas que criam a lógica da dizimação do que não é parecido com eles. Não é nem uma inversão da história, é simplesmente o olhar do outro lado.”

O que é o afrofuturismo?

O afrofuturismo é uma vertente da ficção científica que implementa elementos da cultura negra e da ancestralidade africana a narrativas de cunho futurista, de modo a reposicionar povos historicamente marginalizados por esse gênero como protagonistas de suas próprias histórias. Embora o termo “afrofuturismo” tenha sido cunhado em 1993 pelo crítico Mark Dery em seu ensaio Black to the Future ao tratar de elementos em comum na ficção científica produzida por escritores negros, a essência do movimento remonta a períodos anteriores.  Já em 1859 o abolicionista afro-americano Martin Delany, filho de pai escravizado e mãe livre, publicou uma obra de literatura especulativa intitulada Blake or The Huts of America, na qual narra uma rebelião violenta de escravos nos Estados Unidos. A história contrafactual é um subgênero da ficção científica, o que pode colocar esse livro como um pioneiro do afrofuturismo. No entanto, apesar de estar disponível para leitura no site da Universidade da Virgínia, os seis capítulos finais de Blake se perderam. Não se sabe se há parentesco entre os autores, mas um dos pais do afrofuturismo como o conhecemos hoje é o também afro-americano Samuel Delany, primeiro escritor negro a vencer o prêmio Hugo, maior láurea da ficção científica, com seu romance Babel-17, de 1966. Ao lado dele, as autoras Octavia Butler e N.K. Jemisin são os mais celebrados nomes a produzir literatura nesse registro.  No Brasil, Lu Ain-Zaila e Fábio Kabral são os dois principais nomes do afrofuturismo contemporâneo, embora diversas coletâneas venham sendo publicadas, revelando uma produção cada vez mais pujante nesse estilo. Para além dos livros, o movimento afrofuturismo se consolida como uma estética afrocentrada em diversos outros campos das artes. Na pintura, por exemplo, as telas de Jean-Michel Basquiat; na música, as obras mais recentes de Janelle Monae e Beyoncé; e nos quadrinhos e no cinema, as histórias do Pantera Negra são alguns dos principais exemplos desse estilo que busca protagonismo em áreas ainda dominadas por artistas e escritores brancos.

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