A afinidade de Stephen King com o romance curto remonta aos primeiros estágios da sua longa e prolífica carreira. Em 1982, ele publicou Different Seasons (Quatro Estações), livro com quatro histórias longas que continham algumas das suas melhores obras e acabaram levando a algumas adaptações memoráveis para o cinema, entre elas The Shawshnk Redemption (Um Sonho de Liberdade), e Stand By Me (Conta Comigo). A partir de então, com intervalos de 10 anos, King produziu três livros similares que lhe permitiram tratar de uma ampla variedade de temas, cenários e contextos. O mais recente deles, If It Bleeds, contém quatro contos novos bem no estilo King, nos quais ele faz um bom uso de basicamente todas as formas de narrativa: histórias curtas, roteiros, novelas, épicos em vários volumes e o que cita como “romance para a televisão”, a minissérie A Tempestade do Século.
Mas o romance, que não é longo nem curto (fica no meio), se ajusta particularmente bem ao seu talento, permitindo uma expansividade e mantendo ao mesmo tempo um enfoque disciplinado e controlado do material à mão. Como resultado, são histórias que abrangem um surpreendente território emocional, mas ainda podem ser lidas do começo ao fim de uma só vez.
Mr Harrigan’s Phone, por exemplo, é mais um reflexo da fascinação de King, às vezes sinistra, pela tecnologia e seus efeitos sobre nossas vidas. No centro da história, está a relação entre Craig, o adolescente que é também o narrador da história, John Harrigan, um bilionário aposentado, e Luddite, que sofre de um transtorno chamado borderline. À medida que seu relacionamento se desenvolve, Craig presenteia o homem mais velho com um celular. O presente tem por finalidade facilitar a comunicação “normal”, mas – afinal esta é uma história de Stephen King – essas comunicações se tornam sombrias e mudam, conectando o mundo do Maine rural a um outro desconhecido mais além. Mr Harrigan’s Phone, no fundo, trata de relações duradouras que às vezes construímos apesar de diferenças aparentemente insuperáveis.
The Life of Chuck tem meu voto como a história mais original dessa coleção. Ele começa com a imagem de cartazes trazendo o retrato de um contador de meia-idade chamado Charles Krantz. Em cada cartaz está escrito: “39 GRANDES ANOS! OBRIGADO, CHUCK!”. Quem é Chuck? E qual é a história por trás desses cartazes? Com o tempo, aprendemos muita coisa sobre esse personagem à medida que a história, que se desenvolve em três atos, remonta aos primeiros anos de vida de Chuck. O resultado é uma narrativa ligeiramente surreal e totalmente envolvente sobre dança, música, mortalidade e aceitação, e também sobre a noção básica de que todos nós, como Chuck, contemos multidões.
Rat retoma um dos temas recorrentes de King: a natureza problemática da vida de um escritor. Seu protagonista, Drew Larson, é um escritor em dificuldade que produziu uma dezena de contos – tentou por três vezes, mas fracassou, não terminar um romance. Cada fracasso provocou um maior grau de dano psicológico. Rat narra a tentativa final e desesperada de Drew de concluir um romance, isolado em uma cabana nas profundezas do Maine oriental, e aprende mais uma vez que arte é uma faca de dois gumes, que pode levar a um grande entusiasmo e desespero e – nos momentos mais extremos – à loucura. Uma narrativa imprevisível, com frequência alucinante, essa é uma das explorações definitivas de King do lado escuro do impulso criativo.
A peça central deste livro é a história que lhe dá título. De longe a história mais longa, If It Bleeds é um conto com múltiplos elos com a ficção recente de King. A protagonista – e a heroína de fato – é Holly Gibney, uma jovem erudita que apareceu pela primeira vez em Mr. Mercedes, de 2014, e que teve um papel essencial no romance The Outsider, de King, publicado em 2018. If It Bleeds, na verdade, é uma sequência de The Outsider – embora contenha detalhes relevantes para ter existência própria.
Como em The Outsider, quando Holly e um detetive buscam uma antiga criatura vampírica, em If It Bleeds ela aparece combatendo um monstro similarmente assustador. Desta vez, contudo, ela precisa agir sozinha. Ver como ela supera os obstáculos – entre eles, seus próprios medos, seu passado complicado e a descrença dos outros – é um dos grandes prazeres do livro.
Holly é uma rara criação: uma pessoa admirável. A afeição de King por ela é evidente em cada página e adiciona um peso emocional à narrativa. Holly apareceu em cinco dos romances de King e espero vê-la novamente. Sua última aparição fecha com chave de ouro uma coleção repleta de prazeres impressionantes, às vezes inquietantes. Em If It Bleeds, King continua recorrendo a um reservatório variado de histórias. Sua obra continua profundamente empática, a qual lemos compulsivamente. Que esse reservatório nunca seque. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO