Novo livro de Ulhoa Coelho coloca em xeque a ideia de que o Direito é uma ciência objetiva

"Biografia não autorizada do Direito" é voltado para público não jurídico, mas pode ser útil para estudantes e profissionais da área ao apresentar outro modo de entender

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Por Dirce Waltrick do Amarante
Atualização:

No texto de apresentação de Biografia não autorizada do Direito, Fábio Ulhoa Coelho afirma que o principal objetivo de seu livro “é tentar explicar o Direito para o público não jurídico”, mas, acrescenta, ele “poderá ser útil também para os estudantes e profissionais da área, ao lhes apresentar outro modo de entender o que estudamos e fazemos de verdade”.

Parece-me que o autor cumpre não só com o objetivo de explicar o Direito para o público em geral, como também oferece um livro útil para os profissionais da área, ao discorrer e refletir, de forma clara e direta, sobre questões complexas, importantes e por vezes indigestas, que colocam em xeque, entre outras tantas, a ideia de que o Direito é uma ciência objetiva, como alguns defendem ou gostariam de acreditar. Aliás, diz o ministro Luís Roberto Barroso, que assina o prefácio da obra: “a criação do Direito é essencialmente fruto de uma vontade política, e sua interpretação e aplicação nunca serão inteiramente objetivas. As ciências humanas não lidam com a certeza matemática”.

Obra discorre sobre questão complexas de forma clara e direta. Foto: Dida Sampaio/Estadão

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Essa afirmação talvez responda em parte algumas indagações levantadas por Ulhoa Coelho, entre elas: “Como podem dois juízes, aplicando a mesma lei, ter cada um deles uma interpretação diferente? Se o tribunal já decidiu o assunto de um jeito, por que o juiz tomou decisão em sentido oposto, e logo no meu caso? A lei é igual para todo mundo?”.

Trazer à tona essas questões é um convite à reflexão cujos desdobramentos podem apresentar o “outro lado do Direito. Um lado que talvez o próprio Direito desconheça; e, se conhece, não gostaria de ver exposto”, conclui Ulhoa.

Essa consideração não deve ser entendida como uma crítica ao Direito, nem como uma insinuação de que ele não seja sério, ou ainda de que não precisamos dele, nem, consequentemente, dos profissionais do judiciário; afinal, são eles que irão analisar as leis e os conflitos, mas o que ela pretende é abrir a discussão, refletir sobre as “incertezas” do Direito.

A propósito, Ulhoa Coelho lembra que, sem o Direito para tratar os conflitos de interesse, restava à vítima apenas se resignar. Portanto, o Direito é importante e necessário e, ainda que ele seja falho ou esteja “distante” de determinada comunidade, a possibilidade de acessá-lo permite que a vítima possa “inverter o jogo e conseguir impor seu interesse ”.

Segundo Ulhoa Coelho, sem o Direito, os conflitos de interesses eram resolvidos pela “lei do mais forte”. Hoje, contudo, prossegue o autor, “a lei do mais forte” ainda é aplicada, por exemplo, “nas economias desprovidas de lei de proteção aos trabalhadores e naqueles rincões de pobreza que estão sob o domínio de organizações criminosas”. Isso ocorre por uma série de fatores, que vão de políticas públicas falhas à ineficiência dos sistemas policial, judicial e penitenciário.

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Um dos aspectos mais importantes e reiteradamente discutidos no livro diz respeito, a meu ver, ao sentido subjetivo do Direito, cuja aplicação parte da interpretação da lei, conjugada a um fato específico (dá-me o fato e te darei o Direito, diz o brocardo jurídico), o qual está no mundo e em uma sociedade específica etc.

Parece ser justamente essa especificidade que desagrada o “biografado”, pois, segundo Ulhoa Coelho, ela aponta para algo “bem diferente do que ele vem propagando há algum tempo. Sua identidade é outra. O direito é astuto. Apresenta-se como lógico e é pura retórica. Pretende-se científico, quando não passa de um repertório de opiniões. Mostra-se fortalecido na lei, mas a lei não tem nenhuma força”.

Diante desse quadro, presume-se, então, que o profissional do Direito deveria ter uma formação sólida e uma visão de mundo e de sociedade ampla para poder emitir opiniões. Obviamente que são opiniões baseadas em uma lei, em uma jurisprudência e em um caso específico, os quais, contudo, precisam ser contextualizados e interpretados. Paulo Freire, tão criticado (sem ter sido lido, certamente) por determinados grupos nos dias de hoje, pode dar uma grande contribuição à discussão, pois acredita que “não é possível um compromisso verdadeiro com a realidade, e com os homens concretos que nela e com ela estão, se desta realidade e destes homens se tem uma consciência ingênua. Não é possível um compromisso autêntico se, àquele que se julga comprometido, a realidade se apresenta como algo dado, estático e imutável. Se este olha e percebe a realidade enclausurada em departamentos estanques. Se não a vê e não a capta como uma totalidade, cujas partes se encontram em permanente interação”.

A interpretação da lei, do escrito, ainda que as pessoas precisem “chegar a acordo sobre como entendê-lo”, como alerta Ulhoa Coelho, parte de uma leitura, e toda leitura, sabe-se, é autobiográfica. Então, talvez as perguntas mais importantes a serem feitas sejam: qual é a biografia dos profissionais do Direito? Quem são os juízes, os promotores, os desembargadores, os ministros, os advogados etc. que interpretam e aplicam as leis? Quem são esses profissionais que estão sendo lançados no “mercado”? Até que ponto os privilégios dos servidores do judiciário não acabaram afastando esses profissionais da realidade social brasileira? Até que ponto não são essas vantagens o único atrativo da profissão para muitos recém-formados? Basta passar em um concurso e saber os artigos de um código para ser um bom intérprete da lei?

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Nestes dias sombrios, o que dizer de profissionais ou de estudantes de Direito que pedem o fechamento do Supremo Tribunal Federal? Será que entendem seu objeto de estudo? Será que sabem por que atuam? O que essas pessoas estudaram ou estudam nos bancos das universidades brasileiras?

Terminamos o livro com muitas perguntas, com muitas respostas (no plural, pois estamos falando de Direito, que não é uma ciência exata) e com uma certeza, reforçada muitas vezes pelo autor: “Onde há escassez, há conflito”. Em uma sociedade mais justa haveria tantos processos acumulados nos fóruns e tantos conflitos?

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