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Nova versão da 'odisseia' traz de volta 'o' herói

Tradução de Christian Werner refaz viagem das letras ocidentais

Por Guilherme Sobota
Atualização:

Em um dos muitos episódios mais do que célebres da Odisseia - que ganha nova tradução e edição brasileira, do professor da USP Christian Werner pela Cosac Naify - Odisseu e seus companheiros se veem presos em uma gruta com Polifemo, um ciclope “portentoso”. Esperando uma boa recepção, como é costume entre os povos na cultura homérica, eles são surpreendidos com o engano. “És tolo, estrangeiro”, diz o ciclope. Depois de ver alguns companheiros serem jantados sem dó, Odisseu arma um plano digno do seu status de “muita-astúcia”, cega Polifemo, filho de “Posêidon treme-solo”, e consegue escapar da caverna. Antes de deixar a terra dos ciclopes, porém, Odisseu grita com “ânimo rancoroso”: “‘Ciclope, se a ti algum homem mortal interpelar sobre o ultrajante cegamento do olho, afirma que Odisseu arrasa-urbe te cegou, o filho de Laerte, que tem sua casa em Ítaca’”.

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O episódio - que vai desencadear de fato a viagem turbulenta de Odisseu de volta para casa - é apenas um dos mitos fundadores da literatura ocidental que hoje estão no imaginário coletivo de quase qualquer pessoa, mesmo aquelas que nunca passaram perto do poema. 

“Desconfio que nem mesmo a Bíblia e Shakespeare sejam tão influentes, direta e, sobretudo, indiretamente”, diz, sobre o poema, o professor Christian Werner - além de tradutor da nova versão, especialista em língua e literatura grega (já traduziu Eurípides e Hesíodo ao português). 

A caprichada edição da Cosac Naify não traz só a saudável tradução inédita da Odisseia. O artista plástico Odires Mlászho produziu colagens inspiradas no universo do poema (como a que ilustra esta página), que vêm junto à edição especial (na edição mais simples duas delas aparecem). Há um prefácio do homerista da Universidade John Hopkins Richard P. Martin, um posfácio inédito de Luiz Alfredo Garcia-Roza, um conto de Kafka, um poema de Konstantinos Kaváfis, um glossário de nomes próprios e uma extensa lista de bibliografia crítica. Além de dois textos do próprio Christian Werner, uma introdução e considerações sobre a tradução.

Ilustrações de Odires Mlászho, para a nova edição brasileira da Odisseia, de Homero, publicada em 2014 pela Cosac Naify, com tradução de Christian Werner Foto: Divulgação

“As características gerais mais relevantes que procurei conferir à tradução foram clareza, fluência e poeticidade”, diz o tradutor em um dos textos. 

De origem incerta, a Odisseia compõe com a Ilíada a obra de Homero, de cuja própria existência ainda se mantêm dúvidas, foi feita há quase três mil anos em um grego criado para a obra (semelhante ao português de Grande Sertão) - nada disso parece uma dificuldade inescrutável para Werner, que fala sobre o projeto com segurança.

“Para a tradução de uma narrativa em prosa que tem uma matriz oral como a Odisseia, eu entendo ritmo de formas diversas”, explica, por e-mail, ao Estado. Ele diz que optou pelo verso livre (diferente da fórmula fixa de Homero), e que traduziu, de maneira invariável, outros tipos de fórmulas e expressões muito utilizadas no grego original, como os epítetos.

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“São expressões como ‘Odisseu muita-astúcia’, que, no original, aparecem sempre na mesma posição do verso e que tinham um conteúdo semântico que ultrapassava, para a plateia antiga acostumada com esse tipo de poesia tradicional, a mera soma de seus constituintes individuais”, explica. Essa escolha acaba por criar (reproduzir) um ritmo que conduz o leitor pela narrativa, que, em forma de poema, pode parecer hermética. Outra escolha da tradução foi o nome do herói - latinizado, ele é conhecido como ‘Ulisses’. Werner optou por Odisseu, entre outros motivos, porque a relação com Odisseia e com a palavra ódio, importante no poema, ficam mais claras.

“Toda tradução responde a determinadas necessidades e desejos, sejam eles da editora, do mercado ou do tradutor e de sua época”, comenta Werner. “Como essas necessidades e desejos são plurais, textos clássicos serão sempre traduzidos de novo.” Outras quatro traduções estão em circulação no Brasil: Frederico Lourenço (Penguin Companhia), Donaldo Schuler (L&PM), Carlos Alberto Nunes (Hedra) e Trajano Vieira (34).

Ecos. Vários dos mitos presentes no imaginário da cultura ocidental como um todo são originários da Odisseia - ler e encontrar as histórias completas de referências tão óbvias como o cavalo de Troia ou a Penélope que costura uma mortalha de manhã e desfaz o trabalho à noite é apenas um dos divertimentos de encarar o volume.

A produção artística ocidental subsequente - ou seja, qualquer uma dos últimos 2.800 anos - se alimenta de maneira recorrente dessa narrativa. Praticamente qualquer história sobre viagem presta tributo à Odisseia, mesmo que involuntário, e só na cultura brasileira Werner exemplifica com Grande Sertão: Veredas, os escritos de Chico Buarque, a obra do artista plástico Leonilson e o filme Os Amigos, de Lina Chamie.

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Ao mesmo tempo, a Odisseia conta o fim de uma era: a era dos heróis, descendentes dos homens e dos deuses. Odisseu seria o último - sua jornada de 20 anos de retorno, entre viagens, seres mágicos e tragédias, mas também de uma narrativa com preocupações literárias perenes e investigações humanas, é a jornada que definiu o jeito de contar histórias até o século 21. Vale o esforço.ODISSEIAAutor: Homero Tradutor: Christian Werner Editora: Cosac Naify (R$ 159 a edição especial, R$ 79) Muitas odisseias e um só Homero em Hollywood: FordPor Luiz Carlos Merten

Ele foi um homem ou a personificação coletiva da memória grega antiga? Cada vez mais os historiadores se inclinam pela segunda hipótese, quando o assunto é Homero, mas os poemas épicos Ilíada e Odisseia, a ele atribuídos, são, talvez, a base de tudo. A Ilíada, centrado no final da Guerra de Troia, que durou dez anos, faz da cólera de Aquiles o seu centro dramático. A Odisseia trata do difícil retorno de Odisseu (Ulisses) para Ítaca. Ambos os livros serviram como inspiração ou referência para outros relatos. James Joyce fez a sua moderna versão da Odisseia - Ulisses. O cinema apropriou-se de todos, de Homero como de Joyce.

Deuses e homens atravessam a Ilíada, guerreiros como Aquiles, Heitor, Eneias - que originou a Eneida, de Virgílio -, o ardiloso Odisseu, a bela Helena e Paris, seu apaixonado. E os deuses, aliados de gregos e troianos - Hera, Atena, Poseidon, Apolo, Afrodite. Inspiraram filmes do cinema italiano por volta de 1960, quando Cinecittà produzia relatos de ação e aventuras mitológicas. Em Hollywood, a bela italiana Rossana Podestà foi a Helena de Troia de Robert Wise, e mais recentemente o alemão Wolfgang Petersen fez Troia, narrando o embate entre Aquiles e Heitor, Brad Pitt e Eric Bana.

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A Odisseia não deixa de ser uma sequência da Ilíada. Por mar e terra, Odisseu - Ulisses era seu nome romano - leva dez anos para voltar para casa, para a mulher, Penélope, que o espera desfazendo à noite a costura que fazia durante o dia. No imaginário do homem ocidental, esses personagens teceram arquétipos do masculino e do feminino. Houve uma boa versão em 1954 - Ulisses -, em coprodução ítalo-americana. Mario Camerini dirigiu Kirk Douglas como o herói e a mesma atriz, Silvana Mangano, fez o duplo papel da abnegada Penélope e da sedutora Circe. Camerini não era um diretor de épicos, mas saiu-se melhor que o russo Andrei Konchalovski, cuja Odisseia, feita para TV, é bem medíocre.

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Em 1963, Jean-Luc Godard adaptou, a seu modo, O Desprezo, romance do italiano Alberto Moravia. Fritz Lang era o diretor do filme dentro do filme, que fazia uma versão da Odisseia com estátuas. Brigitte Bardot era a mulher moderna, que não é mais Penélope, mas se ela não espera é porque seu homem (Michel Picolli) também não é mais nenhum Ulisses. Mais de 20 anos depois, Wim Wenders retomou a ideia em Paris, Texas. Harry Dean Stanton é Travis. Com seu filho (Telêmaco?) busca a mulher que caiu no mundo e reencontra num peep-show, para tentar refazer a família.

O conceito da odisseia - o vagar errante, o difícil retorno - percorre tanto a obra de John Ford que virou um tema emblemático do cinema norte-americano. São odisseias de grupos - colonos, pioneiros, índios. Raras vezes - Rastros de Ódio, a tragédia do individualista Ethan Edwasrds -, Ford filmou heróis solitários. Como Homero foi a pedra de toque da literatura grega (e ocidental), Ford ajudou a formatar, no cinema, o conceito de nação da ‘América’. E foi, por isso, o Homero de Hollywood. / L. C. M.

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