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No Salão de Paris, pesquisadora analisa o lugar do negro na obra de Lobato

Em sua obra, agora em domínio público, Monteiro Lobato denuncia a mentalidade escravocrata e traz a questão da negritude e do racismo para a pauta do dia

Por Márcia Camargos
Atualização:
O escritor Monteiro Lobato (1882-1948) Foto: Arquivo/Estadão

Devido ao seu poder transformador, literatura é abismo. A máxima de Antonio Candido cabe como uma luva em Lobato. Tanto na sua produção para adultos, quanto no Sítio do Picapau Amarelo, ele subverte a ordem e questiona princípios. Da invenção do Jeca Tatu, que desmistifica o caipira romantizado, à quebra de hierarquia na república feminista e libertária de Dona Benta, os conceitos são impiedosamente sacudidos. 

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Agora que sua obra caiu em domínio público, com livros impressos às fornadas, ressurge a polêmica do suposto racismo permeando seus textos. Uns abordam as incursões pela eugenia, perceptível no único romance saído da sua pena. Outros citam os famosos adjetivos usados por Emília, que chama Tia Nastácia de “negra beiçuda”. Indício de preconceito? 

Ora, conhecemos o caráter provocativo da boneca, que desacata filósofos, cientistas e, às vezes, inclusive a própria avó. Feita de pano, extrai o melhor dos dois mundos, usufruindo as vantagens dos humanos, sem os compromissos da vida real. Longe de desqualificar a cozinheira, sua falas, verossímeis para a época, são um recurso estético necessário numa narrativa fincada na oralidade e na linguagem coloquial. Além disso, ao resgatar as origens africanas de Nastácia, Lobato valoriza seu papel na cultura brasileira. Ao lado de Tio Barnabé, ela incorpora o viés popular, o saber empírico, as tradições ancestrais. É com este repertório que Nastácia, empoderada, salva-se até das garras do Minotauro. Saciado graças aos seus célebres bolinhos, o monstro desiste de comer gente. Aliás, não podemos esquecer que, de suas mãos mágicas, nasceu a irreverente Emília

Quanto ao Presidente Negro, ficção científica inspirada em H. G. Wells, também pairam suspeitas de racismo. Os Estados Unidos, que Lobato ainda não visitara, é o núcleo do enredo. Pelas lentes do porviroscópio, viajamos ao ano de 2228, quando a escolha do 88.º presidente divide os eleitores. Emerge então um Lobato provocativo, que rema na contramão do politicamente correto. Ele abraçou as teses difundidas entre a intelectualidade nacional por Renato Kehl, que trocou cartas com o escritor e cujo livro, Problema Vital, de 1919, ele prefaciou. No entanto, mesmo neste embate, Lobato surpreende, ao dar voz ao oprimido. Prestes a apoiar um dos candidatos, o protagonista relembra as humilhações sofridas pelo seu povo: “Viu, muito longe, esfumado pela bruma dos séculos, o humilde kaal africano visado pelo feroz negreiro branco, que em frágeis brigues vinha por cima das ondas qual espuma venenosa do oceano”. E recordou o suplício da travessia. A fome, a sede, a doença, o sangue derramado. Acima do convés do tumbeiro, rumores de vozes: “Branco queria dizer uma coisa só: crueldade fria....”. 

A trama cresce quando o herói resolve, ele próprio, concorrer à Casa Branca. Suas chances de vitória levam os antigos adversários a unirem-se num complô maquiavélico, urdindo uma manobra “científico-ideológica” de consequências devastadoras. Ao longo da história, a comunidade negra é impelida a assumir a fisionomia dos brancos. E Lobato, opositor visceral da imitação, defendia que ignorar as raízes significava converter-se em cópia malsucedida. Ou seja, ao abrir mão das suas características étnicas, o negro, fragilizado, tornava-se vulnerável às manipulações. Assim, em lugar de fazer apologia da pureza racial, o autor constrói uma metáfora sobre segregação e aculturação, retratando a sociedade norte-americana do período, distante da democracia racial depois conquistada, após o árduo processo de luta pelos direitos civis.

Já em terras tupiniquins, a denúncia da mentalidade escravocrata, que persistia entre as elites nostálgicas, explode com violência em Negrinha. O mais pungente conto do volume lançado em 1923, ao qual dá o título, o drama da órfã desamparada, vítima da senhora frustrada pela abolição, revela seu traço de crítico social. Nele, Lobato expõe a perversidade da patroa, endossada pela hipocrisia do vigário. De um lado, a virtuosa dama, esteio da religião e da moral, “gorda, rica, dona do mundo, animada dos padres, com lugar certo na Igreja e camarote de luxo no céu”. Do outro, a criança indefesa, “magra, atrofiada, com os olhos eternamente assustados”. Negrinha é submetida a surras, roda de tapas e à vara de marmelo flexível, cortante, para “doer fininho”. 

Afinal, não se pode negar que Lobato flertou com o eugenismo, mas o fez da mesma forma como apreciava Le Bon, antes de descobrir Nietzsche, e como encantou-se pelo fordismo, espiritismo ou comunismo. Não era um feixe coeso de ideias e atitudes, mas, antes, um espírito inquieto, atravessado de incoerências e contradições. Contudo, sem meias-tintas, sua obra arranca o leitor da zona de conforto, trazendo a questão da negritude e do racismo para a pauta do dia. Instigante, convida ao debate atual e urgente no País.

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