Nem com a morte de Albert Uderzo os romanos venceram Asterix

Ilustrador provou por décadas sua aptidão para transformar temas delicados do passado em material para deleite

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Por André Cáceres
Atualização:

O quadrinista francês Albert Uderzo morreu ontem, aos 92 anos, em sua residência, em Neuilly-sur-Seine, comuna às margens do Rio Sena, nos arredores de Paris. Mais conhecido por ter sido cocriador de Asterix e Obelix, o artista foi vítima de um ataque cardíaco sem qualquer relação com o coronavírus, segundo seu genro Bernard de Choisy relatou à AFP.

O quadrinista Albert Uderzo, ilustrador de 'Asterix e Obelix' Foto: Yves Herman/Reuters

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Uderzo publicou, ao lado do roteirista René Goscinny (1926-1977), 24 livros da série Asterix, que venderam, ao longo de seis décadas, mais de 370 milhões de exemplares traduzidos para mais de cem idiomas em todo o mundo. 

Após a morte de Goscinny, a franquia seguiu adiante, rendendo adaptações live action estrelando Christian Clavier e Gérard Depardieu, diversos filmes de animação e jogos de videogame inspirados nas tramas e cenários dos personagens, além, é claro, de outros álbuns em quadrinhos, sendo alguns com arte do próprio Uderzo e outros, mais recentemente, com autoria de outros quadrinistas.

Desde a primeira publicação de Asterix, em 1959, na edição inaugural da lendária revista Pilote, René Goscinny e Albert Uderzo já eram reconhecidos como uma dupla bem estabelecida no competitivo mercado de quadrinhos franco-belga, talvez o mais qualificado do mundo ainda hoje. 

A bande dessinée humorística de Asterix retratava a resistência de um vilarejo gaulês contra o irresistível avanço do Império Romano sobre suas terras no século 1.º a.C. O tema pode até soar árido e mais adequado a um livro de história antiga do que ao entretenimento infantojuvenil, mas Goscinny e Uderzo provaram por décadas que eram magistrais em transformar assuntos delicados do passado em material para deleite.

Após uma bem-sucedida parceria com ninguém menos que Jean-Jacques Sempé, Goscinny trabalhou com Uderzo em Oumpah-pah, quadrinho que antecipa algumas das temáticas que viriam a ser aprofundadas em Asterix. Com um nativo americano como protagonista, a obra oferecia comentários ácidos a respeito do colonialismo francês na América do Norte. Na época, Oumpah-pah já demonstrava a desenvoltura da dupla para trabalhar com controvérsias da história, como invasões e genocídios, por uma ótica humorística, mas nunca acrítica. 

É surpreendente, aliás, que um quadrinho que retrata estereótipos étnicos e nacionais (do norte da África à península escandinava, praticamente todos os povos e países foram alvo de piadas de Uderzo e Goscinny), como Asterix, tenha sobrevivido tão bem na atual era do politicamente correto. Isso só demonstra a aptidão da dupla para fazer rir sem ofensas preconceituosas e desnecessárias – façanha não disponível a qualquer artista que trabalha com humor. 

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Se Asterix e Oumpah-pah foram fortemente inspirados tanto pelo movimento franco-belga, especialmente pela obra de Hergé, quanto pelos primórdios dos quadrinhos americanos, com destaque para os trabalhos iniciais de Walt Disney, Albert Uderzo provou que também sabia refletir sobre a história em traços mais sóbrios. Uma de suas mais preciosas obras, ainda pouco conhecida no Brasil, é Les Aventures de Tanguy et Laverdure, quadrinho com tom realista que acompanha dois pilotos da Força Aérea Francesa durante a 2.ª Guerra Mundial. 

A HQ foi realizada em parceria com o roteirista Jean-Michel Charlier e, assim como a estreia de Asterix, figurou na edição inaugural da Pilote. A revista, que teve em suas páginas mestres do século 20 como Jean “Moebius” Giraud, Phillipe Druillet e Hugo Pratt, foi concorrente de outras publicações fundamentais para a história do quadrinho europeu, como as belgas Tintin e Spirou e a francesa Métal Hurlant, e foi publicada durante 30 anos, entre 1959 e 1989. 

Os anos 1960, contudo, foram a era de ouro da parceria entre Uderzo e Goscinny, quando as tramas mais aclamadas pelos fãs de Asterix foram publicadas, como seu encontro com Cleópatra no Egito, suas aventuras na Bretanha e seus embates com Júlio César. No Brasil, Asterix foi publicado pela editora Record, principalmente ao longo dos anos 1980, mas a maioria da saga permanece fora de catálogo. É possível encontrar alguns dos livros clássicos da dupla, como A Cizânia, Asterix Entre os Bretões, A Odisseia de Asterix e Asterix e Cleópatra, em sebos e sites que vendem livros usados, como Estante Virtual e Amazon, por preços que variam, em média, de R$ 19 a R$ 59.

Após a morte precoce de Goscinny, no entanto, Uderzo deixou de publicar Asterix por vários anos. Eventualmente, ele mudou de ideia e teve de enfrentar críticas e controvérsias ao prosseguir com a publicação da saga como roteirista e ilustrador. Com o tempo, ele passou a convidar outros artistas para trabalhar na série, até que se aposentou de vez dos quadrinhos em 2011. 

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Direitos. Com seu afastamento e a posterior venda dos direitos dos personagens, o ilustrador chegou a passar por uma desgastante disputa judicial com a própria filha, a editora francesa Sylvie Uderzo, ao longo de vários anos. Em um artigo ferino publicado no jornal Le Monde, ela e seu marido, o escritor Bernard de Choisy, acusaram Albert Uderzo de “deixar os portões da vila gaulesa abertos para a invasão dos romanos”, em uma referência a Asterix.

Poderia se dizer que, com a morte de Uderzo, os romanos finalmente venceram. Entretanto, com o enorme sucesso de seus personagens, que ainda hoje se espalham por dezenas de filmes, videogames, releituras literárias e sequências quadrinísticas, é seguro afirmar que os portões da vila gaulesa permanecem firmemente guardados – e assim ficarão por muito tempo.

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