"Narrativa é um reflexo da realidade"

Em entrevista ao Estadão em 2007, Mario Benedetti revelou a importância da literatura

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Por Ubiratan Brasil
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Ao escritor uruguaio Mario Benedetti, sempre interessou o conjunto de detalhes do cotidiano, desde relações amorosas até rituais burocráticos que cercam a vida profissional. Isso marcou profundamente sua obra, como no romance "A Trégua", lançado em 1960 e que, com mais de cem edições em espanhol, tornou-se sua obra mais famosa - há uma edição disponível em e-book, pelo selo Alfaguara, da Companhia das Letras.  Nesta segunda-feira, 14, comemoram-se os 100 anos de nascimento de Benedetti, que morreu em maio de 2009. Montevidéu, a capital uruguaia onde ele viveu e escreveu, festeja com o lançamento do Mirada Benedetti, projeto alojado no site de Turismo da prefeitura da cidade que permite uma visita virtual aos locais que inspiraram contos e poemas de Benedetti.  Ao registrar uma alma, no mínimo cheia de tormentas, na figura de um viúvo que está prestes a se aposentar em uma firma de autopeças e que se apaixona por uma jovem subordinada, Benedetti propõe, em "A Trégua", um questionamento sobre a felicidade e um retrato agridoce dos difíceis relacionamentos humanos. Em 2007, quando foi lançada a mais recente versão impressa do livro no Brasil, o escritor concedeu a seguinte entrevista ao Estadão

O poeta uruguaio Mario Benedetti, na casa dele em Madrid, na Espanha emmaio de 1999 Foto: EFE/ M. Hernandez De Leon

Como o senhor analisa hoje o abismo geracional de A Trégua?  No livro, a diferença geracional acontece em dois níveis, entre pai e filhos e entre homem adulto e mulher jovem. Se eu escrevesse a história no tempo presente, as relações não teriam as mesmas características, uma vez que o país mudou - na verdade, o mundo se alterou. Como eu disse no livro, dedicado aos jovens, se os responsáveis pelo mundo são todos veneravelmente adultos, e o mundo está desse jeito, será que não devemos prestar mais atenção nos jovens? Sou um poeta velho e, como tal, ao invés de acreditar - como muitos da minha geração - que os velhos somos sábios, me pergunto, a cada dia que passa, se o mundo não estaria assim porque não cedemos espaço aos jovens.  Falar sobre os direitos da mulher e permitir que ela trate do sexo com tanta liberdade implicou em um grande passo na narrativa da época?  Penso que, como em todas as épocas, a narrativa acontece em um contexto determinado e é um reflexo da realidade. Em um passado não tão distante, havia coisas que eram apenas sugeridas, mas agora a franqueza invadiu também a literatura. Isso porque antes influenciou as relações sociais em sua linguagem a partir da luta pelos direitos humanos e suas conquistas. Como explicar as 125 edições de A Trégua e suas mais de vinte traduções?  Na realidade, o livro soma mais de 150 edições. Uma das razões de tamanha difusão é sua trama, que trata tanto de um relacionamento familiar envolvendo o trabalho como também social e político. Sem se esquecer do destaque para uma relação amorosa contextualizada na classe média, o que é comum na maioria dos países, independentemente dos regimes políticos. Como o senhor avalia a adaptação cinematográfica de A Trégua?  Sem prejuízo de seus valores, especialmente em relação às interpretações, tive algumas diferenças com o diretor Sergio Renán, com quem hoje mantenho uma boa relação. O que mais pesou foi a mudança de cidade, já que o romance se passa em Montevidéu e o filme transcorre em Buenos Aires. Também não vi reproduzido no cinema o contexto político. O senhor disse certa vez que a literatura pode revelar às pessoas sentimentos antes desconhecidos. O que ela lhe revelou?  Em primeiro lugar, revelou minha própria possibilidade de me dedicar a ela. A partir da quantidade livros que li e que me pareceram excelentes, surgiram sempre personagens, ambientes e até palavras que me deixaram seu ensinamento. Por exemplo, sempre recordarei meu descobrimento da literatura do poeta argentino Baldomero Fernández Moreno. Em um momento em que a poesia que se escrevia no Rio da Prata era muito obscura, quase esotérica e recheada de artifícios que afastavam o leitor, a obra de Fernández Moreno mostrou que era possível escrever boa poesia com clareza, sensibilidade e mantendo um bom nível de qualidade. Qual o papel da literatura para o senhor?  No plano pessoal, eu poderia dizer que a literatura tem em minha vida um papel fundamental. No âmbito social, considero que a leitura fornece elementos muitas vezes geradoras de novas ideias e de novas atitudes, despertando em todos a imaginação criadora.*  Trecho de A Trégua “Hoje, entraram para o escritório sete empregados novos: quatro homens e três mulheres. Tinham umas esplêndidas caras de susto, e de vez em quando dirigiam aos veteranos um olhar de respeitosa inveja. A mim, couberam dois pirralhos (um de 18 e outro de 22) e uma moça de 24 anos. Portanto, agora sou totalmente chefe: tenho nada menos que seis funcionários sob minhas ordens. Pela primeira vez, uma mulher. Sempre desconfiei delas em matéria de números. Além disso, outro inconveniente: durante o período menstrual, e até mesmo nos que os antecedem, se normalmente forem espertas, elas ficam meio atarantadas; e se já forem atarantadas, tornam-se completamente imbecis.”

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