'Não queremos revolução socialista, nem ditadura militar', diz Vargas Llosa

Ao 'Estadão', escritor peruano comenta sobre o fracasso marxista e o perigo da direita radical

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Por Ubiratan Brasil
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A América Latina sempre povoou o pensamento do escritor peruano Mario Vargas Llosa. Aos 85 anos, o ganhador do prêmio Nobel de Literatura de 2010 defende com veemência o liberalismo democrático, o que o coloca, muitas vezes, em pé de guerra contra governos extremistas, seja de esquerda ou de direita. “Não queremos a revolução socialista, nem as ditaduras militares para a América Latina”, disse ele ao Estadão, jornal do qual é colunista, em uma conversa realizada por Zoom. Ele estava em Madri, na Espanha, onde passou boa parte do período de isolamento provocado pela pandemia da covid.

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Para Llosa, autor de clássicos como Conversa no Catedral e A Guerra do Fim do Mundo, a América Latina atravessa uma crise de renovação política que, muitas vezes, termina de uma forma que se tornou tradicional no continente: na instauração de um governo extremista. Ele cita seu país como exemplo negativo. “Apesar dos problemas que tínhamos, a economia funcionava bem, e agora está uma catástrofe. A ascensão de uma extrema esquerda ao poder fez com que houvesse uma fuga de capitais muito grande e há uma preocupante paralisação no país”, observa.

Também revela sua preocupação com a presença cada vez mais assentada das fake news, especialmente na política, na qual podem até influir na definição de uma eleição. Daí a importância crescente da imprensa livre, “que as enfrente e as denuncie”.

Mario Vargas Llosa em foto de 24 de abril de 2014, em fórum de apoio à oposição da Venezuela em Caracas Foto: Jorge Silva/Reuters

Na entrevista, para a qual interrompeu a escrita de um artigo sobre Benito Pérez Galdós, prolífico escritor espanhol do século 19, Llosa relembrou com gosto de seu encontro com o argentino Jorge Luis Borges, em 1981, do qual surgiu uma longa conversa, agora convertida no livro Meio Século com Borges, que será lançado no próximo ano pela Alfaguara. Sobre o colega, Llosa revela um olhar condescendente. Antes, a editora vai recuperar Cartas a um Jovem Escritor, originalmente lançado em 2006 e no qual convida o leitor a alçar voo na arte da literatura. A seguir, os principais momentos da entrevista.

Qual a sua opinião sobre o prêmio Nobel de Literatura recém-concedido a um escritor africano, o tanzaniano Abdulrazak Gurnah

É interessante que o Nobel chegue à África, que chegue aos escritores africanos, entre os quais tenho certeza que há nomes muito bons, só que desconhecidos. Circularam muito pouco pela Europa, pela América Latina. 

Gostaria de falar um pouco sobre um trecho de seu último livro, Meio Século com Borges, lançado na Espanha, uma bela entrevista que o senhor fez com o escritor argentino. O senhor ficou impressionado por não encontrar um único livro do próprio Borges na biblioteca. 

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Nenhum! (risos). E ele me respondeu: “Sou muito menos importante que os escritores que tenho ali”. Creio que Borges adotou uma espécie de resposta-padrão para tantas perguntas que sempre lhe eram feitas. Era como um jogo, porque ele tinha a impressão de que o público não mudava, era sempre o mesmo. Então, Borges tinha respostas perfeitamente prontas, estudadas, assim, podia falar horas e horas (risos). 

Um homem muito seguro.

Mas era um dos grandes escritores que tivemos e, muito importante, Borges mudou a vocação do idioma espanhol, que é muito caudaloso, no qual é necessário usar muitas palavras para expressar as ideias. Ele fez o contrário, foi muito rigoroso, preciso. Então, a língua literária espanhola se transformou completamente com ele. Foi algo muito preciso, muito concreto, muito específico. Não existem antecedentes na língua nem seguidores, pois acredito que Borges não tem discípulos. 

Eu gostaria de aproveitar outra de suas perguntas a Borges: qual é o regime político ideal para o senhor? 

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Bem, sou um liberal, um democrata, creio na liberdade. E nada dinamizou tanto a democracia como o liberalismo, fonte das grandes reformas democráticas como, por exemplo, a criação dos sindicatos, a ideia de igualdade de oportunidades. É importante que cada geração parta de um mesmo ponto de partida para que a sociedade tenha um dinamismo. Ao mesmo tempo, creio que os grandes pensadores liberais são práticos, tratam de não precipitar as grandes reformas, pedem que as mudanças sejam feitas conforme a vontade das próprias sociedades, e isso é o que impede ou limita a violência que é tão grande, hoje em dia, nas sociedades que são aferradas a uma certa ideologia. 

Há alguns dias, o senhor comentou que o ódio guia os caminhos políticos e sociais na América Latina.

Há uma situação muito difícil na América Latina porque dá a impressão – e não só pelo que aconteceu em meu país – de que estamos retrocedendo à época das grandes aventuras marxistas, que fracassaram em todos os lugares. Onde o marxismo teve êxito? Em nenhum lugar. Desapareceu do mundo: China, Rússia, os países-satélites já não são comunistas. O fracasso foi muito evidente. E os casos na América Latina são muito dramáticos: em Cuba a população saiu às ruas para protestar, na Venezuela, 5 milhões de pessoas fugiram para não morrer de fome, e, na Nicarágua é algo vergonhoso, o comandante Daniel Ortega prende todos os adversários. O que se quer ressuscitar? Esses regimes se converteram em ditaduras, algo que temos uma longa tradição na América Latina. 

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Protesto em Havana, Cuba, em julho de 2021 Foto: Alexandre Meneghini//Reuters

A preocupação hoje seria com a direita radical?

Infelizmente, existe uma direita na América Latina muito reacionária, que se nega a aceitar tanto as mudanças como uma realidade que não pode ser de privilégios, de fortunas estabelecidas. Há que existir uma democracia genuína, autêntica. Então, essa direita é um grande obstáculo e está apoiada, sobretudo, na ideia do golpe militar. Eis a grande tradição da direita latino-americana, as ditaduras. Não queremos a revolução socialista, nem as ditaduras militares para a América Latina. Queremos a democracia e isso é o que é importante para a América Latina, mas, infelizmente esta é uma época muito negativa.

A América Latina atravessa uma crise de renovação política? 

Acredito que a América Latina atravessa uma crise. Esperemos que seja uma revolução positiva, um enriquecimento da democracia, mas o que se vê na região hoje em dia é um retrocesso a formas muito primitivas e que estão desautorizadas pelo fracasso que obtiveram em todos os lugares. Na Europa, temos um fenômeno muito curioso de países como Polônia ou Hungria que escaparam do socialismo e agora vão em direção à extrema direita. Isso também é muito preocupante porque não é a extrema direita que vai adotar novas soluções. Os países que mais progrediram são as verdadeiras democracias funcionais, que têm uma participação muito ativa do liberalismo que, acredito, é o motor da democracia. Havia indícios de que a América Latina caminhava para uma boa direção, mas, infelizmente, as últimas eleições mostraram que não é assim. Há uma espécie de uma teimosa reforma para trás. É voltar aos anos 1960, 1970 do século passado. Nenhum progresso vai acontecer dessa evolução.

E há ainda a questão das fake news.

É um problema muito sério, pois qualquer pessoa, instituição ou governo pode introduzir fake news e criar uma confusão absolutamente monumental. É um problema de que não tínhamos consciência, mas é uma realidade e pode criar confusões absolutamente terríveis, especialmente em eleições. Daí a importância de uma imprensa verdadeiramente livre que enfrente as fake news e as denuncie. Os governos podem fazer muito pouco e, inclusive, as utilizam como já vimos. Isto é um grande perigo e um risco para a democracia no futuro.

Gostaria de voltar à entrevista com Borges. Para ele, a política era um tédio.

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Sim, mas a verdade é que, quando opinava, não se equivocava. Sabemos que, na Argentina, havia muitos partidários do nazismo, mas Borges foi um homem totalmente identificado com os aliados, ou seja, com a liberdade. Só lamento sua aproximação com os militares argentinos e os chilenos. Quando recebi o prêmio Nobel, na Suécia, em 2010, fiz uma homenagem a Borges e pedi desculpas por estar recebendo em seu lugar. Foi quando os acadêmicos me disseram que ele não ganhou o Nobel porque aceitou uma condecoração do ditador chileno Augusto Pinochet (em 1976). Borges deveria receber o Nobel, sem nenhuma dúvida, mas esse detalhe com Pinochet afastou qualquer possibilidade. 

É uma questão delicada e ressuscita aquela discussão sobre se a atitude discutível de um artista como indivíduo pode comprometer ou mesmo diminuir a importância de sua obra.

Creio que Borges já havia escrito sua obra mais importante quando, em 1963, ao chegar à França, é finalmente reconhecido. Os leitores de Borges ainda eram poucos naquela época, mas, na verdade, o grosso de sua obra importante já havia sido escrito. E, na França, vem a consagração, com traduções, admiração e reconhecimento, com revistas dedicando números especiais ao seu trabalho. Borges é um homem que passou a se repetir, pois os grandes contos, os grandes ensaios, já estavam escritos em 1963, como disse. Ele fazia uma espécie de jogo ao falar de literaturas orientais, de contos, do seu desprezo à política. Na realidade, ele não desprezava a política, pois sempre esteve muito bem orientado, salvo, acredito, sua aproximação com os generais. Ele acreditava na democracia, e não na revolução. Sim, era um homem que desprezava a política, não se interessava. Na sua obra, é possível entender essa posição, porque ele não se interessava pela realidade – seu mundo era o fantástico, o imaginário, relacionado a jogos da fantasia e da imaginação. Foi aí que despontou sua originalidade extraordinária. A língua espanhola foi profundamente mudada por Borges: era uma até sua chegada e, depois, com sua escrita, é totalmente transformada. É um escritor sem antecedentes e sem discípulos. 

Mario Vargas Llosa em foto durante apresentação de seu livro em Madri, na Espanha, em março de 2016 Foto: Andrea Comas/Reuters

Mas o que o senhor diria sobre as atitudes discutíveis de grande artistas, como Borges ou mesmo Neruda, simpatizante de Stalin

Os intelectuais e os artistas não têm de ser lúcidos, mas originais. Não precisam estar lúcidos, pois podem estar cegos. Um dos maiores filósofos dos nossos tempos, o alemão Martin Heidegger, era nazista. Como é possível entender que o maior filósofo de nosso tempo era um nazista? Isso é incompreensível. Quando falava de linguagem, da Grécia antiga, era muito lúcido. Mas, ao tratar da realidade contemporânea, era um cego em absoluto. Fui grande discípulo do francês Jean-Paul Sartre e do grupo existencialista, mas ele chegou a identificar a União Soviética com a liberdade. O homem que parecia ser o mais inteligente da França estava completamente cego ao falar sobre socialismo. Repito: os escritores têm de ser originais, inventivos, mas não lúcidos em política ou em termos sociais, que não são necessariamente seu ofício. Muitos se equivocaram. Aristóteles, o gênio, não disse que a mulher era uma forma empobrecida do homem? E Platão, que criou uma espécie de corrente muito reacionária e antidemocrática, ao mesmo tempo que a Grécia vivia uma liberdade, no começo da história da liberdade? Muitos se enganaram. 

O senhor acredita que a pandemia vai deixar influência na criação artística? 

O ato da escrita já não é mais o mesmo hoje como antes da pandemia. Não depois de centenas de milhares de mortes provocadas pela covid. As dificuldades e o medo se espalharam muito. Certamente, isso vai ter um efeito, tanto na arte como na literatura, como na maneira de pensar, na filosofia do nosso tempo. Agora que índole terá esse efeito? Não sei. Mas tenho certeza que irá provocar uma reação – e algo, provavelmente, muito traumático.

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