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'Não há nada mais parecido com escrever um livro do que traduzir', diz Paulo Henriques Britto

Escritor, poeta e tradutor reúne contos inéditos em 'O Castiçal Florentino', com histórias sobre narradores metalinguísticos e protagonistas incapazes de tomar as rédeas do próprio destino

Por André Cáceres
Atualização:

“Por onde começar?” Se esta reportagem fosse escrita por um dos narradores de O Castiçal Florentino, novo livro de contos do escritor, tradutor e poeta carioca Paulo Henriques Britto, talvez seria nesse tom que ela começasse. Composta por oito narrativas breves e uma novela, a obra não possui um tema central como fio condutor, mas é possível identificar duas características que permeiam quase todos os textos: protagonistas desprovidos de autodeterminação e narradores hesitantes, sempre fazendo comentários metalinguísticos a respeito do próprio relato. 

O escritor, poeta e tradutor Paulo Henriques Britto Foto: Renato Parada/Companhia das Letras

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“Sei que minha fala está se tornando longa demais”, “por algum motivo a palavra ‘legada’ me pareceu perfeitamente apropriada naquele momento”, “como uma mulher que... não, nada de símiles. Nem de metáforas. Principalmente metáforas. As metáforas são o câncer da linguagem”, “eu estava correndo, fugindo não, só correndo, quer dizer, correndo em direção a alguma coisa”. Estas e outras observações mostram como a todo momento os narradores de Britto estão imersos em dilemas a respeito de como narrar suas histórias.  O caráter hesitante da prosa do autor pode advir do fato de, enquanto tradutor de autores como Don DeLillo, George Orwell, Elizabeth Bishop e Thomas Pynchon, Britto prezar pelo cuidado com a precisão de cada palavra. “Não há nada mais parecido com escrever um livro do que traduzir um livro. Não é a mesma coisa, mas é um trabalho de uma natureza muito próxima”, afirma Britto, em entrevista por telefone ao Estadão. “As coisas que você aprende a fazer com a sua língua, traduzindo para ela, são coisas que depois você vai usar na hora em que estiver escrevendo alguma coisa sua. Eu dou aula de Escrita Criativa na PUC e sempre digo aos meus alunos: ‘Você quer escrever bem? Então comece fazendo tradução literária’.” Perguntado se a preocupação com a forma pela qual os contos são narrados, que dá origem a essa voz mais hesitante e autoquestionadora, vem do ofício de tradutor, ele concorda, mas com ressalvas: “Também vem do meu trabalho como poeta, porque a poesia que escrevo é muito metalinguística. Minha formação é de linguista, então tenho essa consciência muito aguda das limitações, das ambiguidades. Essa coisa de estar o tempo todo refletindo sobre a própria escrita”. Apesar das décadas de experiência como tradutor, Britto não acredita ter se contaminado pela prosa dos autores que verteu para o português. “Acho que nenhum dos autores que traduzi deixou marcas na minha ficção. Na poesia, eu não diria a mesma coisa, mas, na ficção, acho que não”, afirma ele, que coloca entre suas inspirações o polonês exilado na Argentina Witold Gombrowicz, o argentino Julio Cortázar e o brasileiro Campos de Carvalho. No entanto, Britto admite: “É claro que o trabalho de tradução e revisão leva você a ficar muito atento com a sua escrita e há um ou outro truque que, não tenha dúvida, posso ter pego de algum autor que traduzi.”  É o caso de Henry James, cuja novela Os Papéis de Aspern inspirou Os Sonetos Negros, que fecha seu primeiro volume de ficção, Paraísos Artificiais, e dialoga também com Relato, que encerra O Castiçal Florentino. Na obra de James, um pesquisador vai a Veneza buscar documentos de seu poeta predileto, guardados por uma mulher que não quer contato com a memória de Jeffrey Aspern. “Meu estilo não tem nada a ver com Henry James, mas esse tema é bem Henry James”, reflete Britto. O enredo da novela ecoa em Os Sonetos Negros, sobre uma personagem que vai ao interior de Minas pesquisar a obra de um autor e, em Relato, sobre um cineasta promissor do Recife que vai ao Rio para tentar adaptar o romance de seu escritor favorito e encontra mais obstáculos do que imaginava de antemão.  Obstáculos, aliás, costumam ser um motor para a narrativa ficcional, algo a ser superado por alguém que não se permite desistir de seus objetivos. No entanto, os protagonistas de Britto, com uma exceção, são personagens completamente destituídos de agência sobre o próprio destino, que se veem levados – e se deixam levar – pelas circunstâncias. A falta de autodeterminação, entretanto, não parece vir de um abismo ontológico como na recusa do mundo de Bartleby, o escrivão da novela de Herman Melville que se nega a cumprir qualquer tarefa, inclusive viver.  Os protagonistas de O Castiçal Florentino, diferente de Bartleby, têm desejos, ambições, mas, ao primeiro sinal de dificuldade, acabam por abandonar suas intenções iniciais e seguem ao sabor do destino por caminhos mais fáceis. Há o estudante de engenharia que se encanta com o mundo do teatro, mas larga sua primeira estreia por uma carreira estável em sua área de formação e se rende a uma vida burguesa convencional. O funcionário que, incapaz de colher um documento solicitado pelo chefe, nunca mais aparece no escritório e é levado a dar uma guinada inesperada na própria vida. Ou o guerrilheiro que, para fugir dos agentes da repressão da ditadura militar, se resigna com a mendicância e, por acaso, se torna uma figura messiânica em um vilarejo interiorano.  Possivelmente o mais curioso personagem que se rende às circunstâncias é o narrador-personagem de Policarpo Azêdo, 35. Após ficar por engano com a sacola de uma mulher no metrô, ele decide restituir a propriedade alheia para provar o próprio altruísmo à ex-mulher, para quem narra a história. Após relatar suas desventuras até a Tijuca, onde ele foi recebido com franca ingratidão, ele reclama: “Eu estava um pouco decepcionado, é claro; no meu entender, tinha feito tudo da maneira mais correta possível, tinha me esforçado ao máximo para colocar os interesses da sociedade acima dos meus, tinha ido de um canto da cidade ao outro numa manhã de sábado, carregando uma sacola que não era minha – e era essa a recompensa que me davam!”. Quase uma personificação do ofício de tradutor, que se desdobra para entregar ao leitor uma “sacola alheia” e é alvo de comentários ingratos de leitores, autores, editores e críticos.  A notável exceção à falta de autodeterminação é o protagonista de Tema e Variações, talvez o melhor conto do volume, praticamente um roteiro de filme esperando para ser rodado. Narrado em primeira pessoa como um discurso de agradecimento, retrata a amizade entre dois estudantes de um conservatório musical. A relação um tanto assimétrica entre eles vai sendo abalada à medida que um deles – o narrador, é claro – passa a receber o crédito pelo talento do amigo. Embora o músico relate as memórias como uma vítima do acaso, Britto faz um bom trabalho ao criar um narrador pouquíssimo confiável.  Reunindo contos nos quais Britto trabalha desde o início dos anos 1970, quando estudou cinema em Los Angeles, O Castiçal Florentino traz instigantes experimentações – como um narrador que está sempre perdendo de vista seu protagonista. Dessa forma, Britto subverte noções consagradas da ficção, que rejeitam a passividade das personagens, mostrando uma certa dignidade na recusa de resistir. 

Leia um trecho do conto Tema e Variações

“Nos primeiros dias nos evitamos, mas uma ou duas ou três semanas depois entrei numa sala que imaginei que estivesse vazia e encontrei Inácio sentado ao piano e se preparando para tocar. Ele não me viu, estava de costas para a porta, lembro que começou um prelúdio do Cravo bem temperado, o prelúdio em ré maior do segundo livro, e logo no primeiro acorde, que ele tocou fortissimo, fiquei absolutamente deslumbrado, permaneci imóvel uns três metros atrás dele – os primeiros compassos foram estupendos, cheios de cores vivas que saltavam do teclado, por assim dizer, e quando alcançou aquela modulação meio inesperada logo antes da escala descendente triunfal do compasso quarenta cheguei a ficar arrepiado, e quando terminou o prelúdio eu estava a ponto de aplaudir, mas ele não fez nenhuma pausa e emendou direto na fuga, e se o prelúdio tinha sido um espetáculo de energia, de vivacidade e alegria, a fuga foi ainda melhor, se é que isso é possível – ele tocava a fuga bem devagar, mais ainda que na gravação da Landowska, com uma melancolia controlada, doída, mas que não tinha nada de sentimentalismo, algo que até eu, na minha imaturidade, percebi que era uma coisa muito rara de se encontrar num artista – a cada nova entrada do tema, perfeitamente articulada, eu me extasiava mais, e a execução era de uma delicadeza, de uma perfeição tal que, quando terminou, me aproximei dele para fazer um baita elogio e, em vez de falar, comecei a chorar...”

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