Na Flip, portuguesa Isabela Figueiredo revolve seu passado colonial

Nascida em Moçambique em 1963, ela escreve, em 'Caderno de Memórias Coloniais', sobre o pai que tanto amou - mas cujo comportamento na África ela nunca pode compreender; autora é um dos destaques da Flip deste sábado, 28

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Por Maria Fernanda Rodrigues
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PARATY - Isabela Figueiredo gosta de pensar que poderia ter sido brasileira. Quando seu pai decidiu deixar Portugal em busca de trabalho e de uma vida melhor, queria mesmo era ter vindo para cá. O visto foi negado e ele acabou em Moçambique, como tantos outros conterrâneos que partiram para as colônias portuguesas na África. Isabela nasceu em Lourenço Marques, hoje Maputo, em 1963. Viveu ali até os 13 anos, quando, depois da independência, foi mandada sozinha para Portugal, para viver com familiares desconhecidos, enquanto os pais tentavam a sorte, e se arriscavam, por mais um tempo.

Autora de 'A Gorda' e 'Caderno de Memórias Coloniais', Isabela Figueiredo foi chamada de traidora por expor os bastidores da vida na África Foto: Maria Fernanda Rodrigues/Estadão

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A infância na África a marcou de tal maneira que virou matéria-prima de sua literatura – uma literatura corajosa e criticada por muitos retornados como ela, que a acusam de trair seu pai e seu país. Na verdade, ela traiu o pacto de nada dizer sobre o que acontecia no outro continente – mas só se permitiu isso depois da morte do pai.

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Apresentada ao leitor brasileiro por seu romance A Gorda, publicado recentemente pela Todavia, ela lança agora justamente o Caderno de Memórias Coloniais, lançado originalmente em 2009. Um livro sobre seu pai, sobre como ele se relacionava com os negros e sobre a desigualdade que ela, criança, percebia e não compreendia.

Isabela Figueiredo, uma das atrações da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip 2018) deste sábado, 28, quando participa de uma mesa com Juliano Garcia Pessanha, falou ao Estado sobre essas lembranças e sobre como elas permeiam a sua obra – que é, e sempre será, ela diz, dedicada a esses anos fundadores. Uma obra sobre o que viu e sentiu essa garota que cresceu no meio de adultos europeus num país africano, que abriu a porta de casa e ouviu um garotinho da sua idade pedir emprego, que calou suas dúvidas e angústias por muito tempo e que encontrou na escrita uma forma de apaziguar sua revolta – e de falar dos absurdos cometidos na colonização. 

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“Eu tinha uma urgência muito grande dentro de mim, desde que eu saí de Moçambique, de contar essas histórias. Meu primeiro livro já fala da África, mas é uma história ficcional porque meu pai era vivo – e eu não podia escrever Caderno de Memórias Coloniais, sobre ele, um colonialista, com ele aqui. Não queria magoar o meu pai. Eu amava o meu pai. Sua morte me liberta para escrever daquela maneira agressiva e violenta, sobre ele”, conta, em Paraty.

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Você foi exposta a muita coisa muito cedo. Houve inocência na sua infância? Foi exatamente a minha inocência que me fez ver a realidade sem o filtro dos adultos, com os olhos de uma menina que questiona por que os seres humanos não são iguais, por que aquele menino não vai à escola e está descalço. A minha intuição me dizia que aquilo não estava certo. Quando percebi que meu pensamento era proibido, eu me senti uma espécie de traidora. Sabia que não podia falar alto o que sentia. Não podia dizer ao meu pai que não concordava com a forma com que ele tratava os empregados. Comecei a achar que eu tinha um lado traidor em relação a ele e àquela realidade.

Como é ser tão pequena e viver com sentimentos contraditórios? Não sabemos nada quando somos crianças. Estamos sempre a procurar equilíbrio e pilares. O que sinto é que, apesar dos meus dilemas, consegui me equilibrar e entendi o que tinha de dizer e o que tinha de calar. A relação com meus pais, no futuro, foi muito difícil. Eu e meu pai tivemos muito conflitos políticos e ideológicos. Nossa guerra só terminou com sua morte, embora em certo momento tenha havido um compromisso de humor. Ele me chamava de comunista e eu o chamava de fascista, e a gente conseguia rir disso – com ironia, mas sem briga.

Houve amor até o fim? Sim.

E perdão? O perdão está implícito no amor. Muitos portugueses que vieram da África acham que eu traí meu pai e todos os retornados. Não sou uma traidora e eles deviam me agradecer. A minha narrativa nunca mais vai sair da história do meu país. 

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Histórias assim precisam de uma distância no tempo para serem escritas? Precisamos que os envolvidos morram porque não queremos magoar nossos familiares. Eu tive o azar-sorte de ser uma filha tardia. Tive pouco tempo para viver com eles, mas pude falar sobre isso mais cedo que outras pessoas. Eu não permiti à minha mãe a leitura de Caderno. Eu li para ela e fiz censura de algumas partes. 

Vasculhar a memória, remexer os escombros, sensações. O que fica depois da obra pronta? Dói igual? A revolta é a mesma? A revolta apaziguou. Quando escrevi o Caderno, meu pai tinha acabado de morrer e eu pensava obsessivamente nele. Falava com ele sozinha e achei que estava maluca. Comecei a fazer psicanálise freudiana, dura. Fui obrigada a mergulhar fundo dentro de mim. Muitas vezes, enquanto escrevia o livro, cheguei a fechar os olhos como se entrasse num poço de mim mesma para procurar sentir como criança, com os meus olhos de ontem. Quando o livro sai, eu faço o exorcismo dos meus fantasmas. Na revisão para a reedição de 2016, senti uma enorme vontade de branquear a figura do meu pai, o que significava que eu já não estava tão zangada com ele. Isso não aconteceu. Mas vou voltar a escrever outros cadernos. Tendo a voltar sempre a isso. É o meu vulcãozinho. O magma está sempre ali a saltar: África, África, África.

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Você só voltou a Moçambique muito depois. Passei o Natal e a virada de 2016 para 2017. Comprei a passagem depois de um sonho. Eu não podia continuar mais com essa pedra no meu caminho. Lá, sofri com saudade da minha família, chorei, fiquei perturbada. Eu estava na minha terra desterrada. Uma experiência muito radical. 

Quem é você depois da viagem? Eu descobri que sou portuguesa. Passei minha vida dizendo que eu era diferente, moçambicana, colorida. Passei a vida a falar mal dos portugueses. Cheguei lá e me senti um peixe fora d’água. Sinto que aquela não era a minha cultura. Fui à África descobrir que eu era europeia. Senti saudade do meu pai, da minha mãe, da minha infância e senti saudade do tempo colonial. Então, o que descobri? Que eu fui uma colonialista sem saber (risos).

CADERNO DE MEMÓRIAS COLONIAIS Autora: Isabela Figueiredo Editora: Todavia (184 págs.; R$ 49,90)

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