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'Mundo nos vê com assombro por manter Bolsonaro', diz autor de livro sobre história do impeachment

Em 'Como Remover um Presidente', o jurista Rafael Mafei narra a história desse dispositivo jurídico desde seu surgimento na Inglaterra medieval até o Brasil contemporâneo

Por André Cáceres
Atualização:

Quando, em 1376, o representante da Câmara dos Comuns Peter de la Mare questionou a atuação do o barão de Latimer na condução das finanças da Inglaterra durante a Guerra dos Cem Anos, ele não sabia, mas estava abrindo caminho para uma história que continua tendo desdobramentos até hoje em todo o mundo democrático: a história do impeachment. É essa trajetória que o livro Como Remover um Presidente, do jurista Rafael Mafei, narra em detalhes, passando pelo seu nascimento no direito britânico, sua modernização na Constituição dos Estados Unidos e sua aplicação no Brasil.

O jurista Rafael Mafei, autor do livro 'Como Remover um Presidente' Foto: Renato Parada/Zahar

Embora o primeiro processo bem-sucedido de impeachment do País tenha sido instaurado apenas em 1992, contra Fernando Collor de Mello, a relação brasileira com esse dispositivo jurídico é longa e conturbada. A noção de crime de responsabilidade, herdada do Brasil imperial, motivou a criação de uma lei que permitia a impugnação do presidente e que foi pivô de uma crise política já durante o primeiro mandato da República, levando à renúncia do marechal Deodoro da Fonseca. Nosso segundo presidente, Floriano Peixoto, também viria a sofrer uma tentativa de impeachment, mas seria absolvido. Diferente dos processos de “impedimento” que afastaram os presidentes interinos Café Filho e Carlos Luz com um intervalo de 11 dias sem acusação, defesa ou um rito digno de um julgamento, durante a crise golpista de 1955 que antecedeu a posse de Juscelino Kubitschek. Mafei passeia por esses e outros saborosos capítulos da história brasileira não com a linguagem seca do mundo jurídico, mas como em um livro de história narrado por um jurista. No entanto, o que torna Como Remover um Presidente urgente são casos mais recentes, envolvendo Fernando Collor e Dilma Rousseff. Além disso, o epílogo da obra é dedicado a analisar, do ponto de vista jurídico, a atuação de Jair Bolsonaro na Presidência da República, esmiuçando os diversos crimes de responsabilidade cometidos em sua administração e que, não fosse pelos elementos políticos que compõem o impeachment, poderiam embasar seu afastamento. Leia trechos da entrevista concedida por Rafael Mafei ao Estadão via chamada de vídeo:O componente 'político' do processo de impeachment vem se sobressaindo ao 'jurídico' na América Latina? Há casos de impeachment que andaram muito bem e casos que extrapolaram o que era esperado do ponto de vista da capacidade do elemento jurídico de disciplinar o ímpeto político. O jurídico é o trilho e o político é o carvão que você joga na fornalha da locomotiva. Muitas vezes a quantidade de carvão fez com que o trilho descarrilasse. O que a gente conseguiu fazer muito bem no Brasil é ter uma disciplina processual do impeachment relativamente clara. Pode parecer pouco, mas é um ganho, porque alguns casos em outros países da América Latina foram exemplares de abuso tipicamente processual. O impeachment do presidente do Equador, do Abdalá Bucaram, ou do Lugo no Paraguai, ou no Brasil os “impedimentos” do Café Filho e do Carlos Luz. A dúvida não era sobre a caracterização ou não de um crime de responsabilidade, o que havia ali era a premência, necessidade ou ambição de remover um presidente do cargo. No Brasil, desde a Constituição de 1988, o aspecto procedimental do impeachment foi muito bem delineado, a única confusão que a gente não conseguiu resolver é a história de haver duas penas ou uma única pena, de modo a saber se o presidente, mesmo que tenha renunciado, possa ser condenado, como o Collor foi, ou mesmo que seja condenado, possa não perder os direitos políticos, como aconteceu com a Dilma. O que a gente ainda não conseguiu fazer bem no Brasil é definir a substância dos crimes de responsabilidade. Talvez porque o julgamento caiba a autoridades políticas, isso sempre ficou no ar e levou muitas pessoas a sustentarem uma visão equivocada, de que esse elemento político do impeachment significa que o Congresso pode dizer que é crime qualquer coisa que eles bem quiserem.Já tivemos mais de 300 pedidos de impeachment protocolados desde 1988 no Brasil. Do ponto de vista puramente jurídico, seria possível ter afastado outros presidentes brasileiros? É difícil dar uma resposta categórica, porque seria preciso que denúncias que foram feitas tivessem recebido uma investigação, um aprofundamento que ajudasse a gente a caracterizar melhor os delitos. Seguramente, se o elemento político não estivesse tão a favor de alguns presidentes do passado, eles poderiam ser investigados por denúncias que tinham, sim, gravidade suficiente para levar a um afastamento do cargo. Fernando Henrique Cardoso teve um pedido de impeachment por uma denúncia grave, que foi a compra de votos pela reeleição. O Lula, o caso do mensalão foi seguramente um caso sério e se conseguisse provar responsabilidade do presidente por aquele ato através de uma investigação, isso poderia ter levado a um desfecho de um impeachment. Acontece que tanto Fernando Henrique quanto Lula tinham escudos legislativos muito sólidos na Câmara dos Deputados. Você tinha germes, sementinhas de acusações que poderiam levar a casos com magnitude para um impeachment, mas nunca vamos saber qual teria sido o desfecho porque elas não tiveram condições políticas de ser aprofundadas a ponto de saber se um crime de responsabilidade estaria caracterizado.A atual onda de impeachments na América Latina é um indício de que essas jovens democracias estão se fortalecendo ou de que estão se fragilizando? O impeachment por si só não é sinal nem de força nem de fraqueza de uma democracia. Porque quando é caso de ele ser posto em prática, ele precisa ser posto. Isso não é nada que orgulhe um país, porque é sinal de uma crise política grave. A gente encarou nossos impeachments com o clima de uma micareta cívica, mas o impeachment tem um aspecto traumático. Ele não é um sinal de estabilidade política, de um país em que a rotina do trabalho dos políticos está consumida pela implementação de políticas públicas, reformas ou debates legislativos que fazem o país avançar, ela está consumida por um conflito político que levou à destituição da maior autoridade política do país. Mas quando ele tem que ser aplicado, não aplicá-lo tem um custo muito alto. Por outro lado, quando não é a hipótese de ele ser aplicado – isso pode significar que o presidente não cometeu nenhum ato ilícito e está meramente sendo removido do cargo ou que cometeu um ato ilícito, mas esse ato pode ser enfrentado por maneiras menos drásticas —, ele também não deve ser acionado. A América Latina, embora tenha ao longo do século 20 registro de muita instabilidade política, tem padrões de instabilidade diferentes de tempos em tempos. O padrão na década de 1960 e 70 era golpe militar; dos anos 90 até agora passa pelo impeachment.Quais são as principais diferenças entre os processos de impeachment de Collor e Dilma? O processo do Collor foi muito mais sumário, rápido e conduzido em meio a uma incerteza procedimental. Embora a Lei do Impeachment fosse antiga, ela nunca tinha sido posta em prática. Muito do aprendizado sobre o rito do impeachment aconteceu com o caminhão em movimento. O episódio da indefinição do Senado sobre o momento do afastamento do Collor é muito ilustrativo. A coisa mais elementar do processo, que era quando o presidente sai e o vice toma posse, ninguém sabia. Tanto que os jornais do dia seguinte à votação deram informações erradas, estamparam na capa que o Collor estava afastado quando juridicamente não estava. Ninguém tinha muita dúvida de que a conduta do Collor implicava crime de responsabilidade, porque o caso do Collor era um caso de abuso de poder e indignidade presidencial quase caricato. No caso da Dilma, o debate não foi processual, houve debate sobre os fundamentos substantivos do impeachment. Houve um descompasso entre as razões que levaram ao impeachment e as razões que levavam o governo dela a ser objeto de tantos protestos. Todas as medições sobre a opinião das pessoas indicam que a Dilma deveria ser afastada por corrupção ou por interferir na Lava Jato, o que nunca esteve entre as acusações que ela sofreu e ironicamente talvez tenha sido uma das razões pelas quais ela politicamente acabou abatida, porque interferir na Lava Jato era tudo que a ala do PMDB que a abandonou queria que ela fizesse. Isso é uma particularidade digna de nota. A outra é uma dúvida jurídica que foi mal explorada, se o fato de ela ter violado a Lei de Responsabilidade Fiscal necessariamente implica que essa violação constitua crime de responsabilidade. Você só recorre ao impeachment quando a conduta que você quer impedir que o presidente continue praticando não possa ser freada de nenhuma maneira. No caso do Collor, como eu vou impedir que ele se reúna na surdina com gente que pratica tráfico de influência no seu governo? As condutas da Dilma que foram apontadas como ilegais pelo TCU se valiam de atos institucionais claros e observáveis à luz do dia no orçamento, nos decretos. Havia maneiras alternativas, mudando a forma de consideração das pedaladas na contabilidade pública, para que elas não servissem mais para maquiar o orçamento, ou então ajuizando ações que impedissem os efeitos de decretos que podem ser considerados ilegais. Esse debate sobre o crime de responsabilidade como sendo uma conduta que não pode ser eficazmente respondida de outra maneira merecia ter sido feito com mais alento.O epílogo do seu livro deixa evidentes transgressões e crimes de responsabilidade cometidos pelo atual governo. Como você vê um impeachment hoje? Não existe um debate jurídico sério sobre o presidente ter ou não praticado crimes de responsabilidade, especificamente no contexto da pandemia. A lei 1079/50 diz que é crime de responsabilidade atentar contra a saúde pública dos brasileiros. Eu não consigo imaginar uma maneira como um presidente da República possa mais explicitamente atentar contra a saúde pública dos brasileiros do que fazer o que o Bolsonaro fez no contexto da pandemia. Qualquer presidente sabe que o espirro de um presidente é notícia na primeira página dos jornais. Todo presidente sabe que palavra, imagem, comportamento de presidente é poder por ele ser o presidente. Quando a Lei do Impeachment diz que o presidente precisa se comportar de acordo com a dignidade, a honra e o decoro do cargo, é principalmente esse freio, essa liturgia que um deputado não precisa ter no mesmo nível que um presidente tem. Que presidente usa sua visibilidade para desacreditar máscara e para, o tempo todo, minar a possibilidade de cooperação federativa ao embarcar numa guerra contra os governadores por pura estratégia política? No fundo, Bolsonaro sabia que os ônus principais da pandemia, que eram mortes, seriam possíveis de ser empurrados para prefeitos e governadores, porque quando a pessoa morre sem leito, ela vai morrer na porta de um hospital estadual ou municipal. O ônus de fechar o comércio cabe aos prefeitos e governadores, porque é uma medida que em muitos casos vai ter variações locais, mas que foi transformado pelo Bolsonaro em um atentado político contra a liberdade das pessoas, de modo que o custo de tomar essa medida como um gestor público passou a ser muito alto. Tudo isso faz parte de uma estratégia política para tentar minimizar o impacto da pandemia na economia, que é a única coisa que normalmente seria atribuível à responsabilidade do presidente. A verdade é que o mundo hoje olha para a gente com assombro por mantermos o Bolsonaro presidente. O comportamento do Bolsonaro do ponto de vista jurídico caracteriza muito facilmente crime de responsabilidade, principalmente na sua gestão da pandemia. O elemento que falta é o político, porque esse é um jogo que o Bolsonaro sabe jogar muito bem e porque um impeachment precisa que todas as pessoas que não pertencem àquela base mais rígida do presidente se convençam não só que o impeachment é cabível, mas também que é a melhor alternativa estratégica à disposição. E esse consenso não existe. O que a gente vai saber é se essa estratégia não dá de barato que as eleições do ano que vem vão ser limpas, regulares e jogadas na bola, quando está a cada dia mais claro que o Bolsonaro não só não tem muito apreço pela condução de uma eleição em que ele se anteveja como perdedor, como também está reunindo condições materiais de jogar sujo na eleição se essa estratégia for boa para ele.

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