Montevidéu, a 'maravilha' de Mario Benedetti

Escritor, que completaria 100 anos nesta segunda, 14, é homenageado no Uruguai

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Por Concepción M. Moreno
Atualização:

Montevidéu, 10 de setembro (EFE) - Tomar café da manhã em Las Misiones, amaldiçoar o desvio para dar a volta na fonte da Plaza Matriz ou sentir a “nudez dos sonhos” caminhando “de cueca” por Sarandí são algumas das cenas que vive Martín, o inesquecível protagonista do filme “A trégua”, em Ciudad Vieja, Montevidéu. Seu criador, Mario Benedetti, e a capital uruguaia são uma dupla inseparável, embora ele não tenha nascido ali, mas em Paso de los Toros (Tacuarembó), e que a cidade tenha luzido suas ruas em canções, filmes ou relatos alheios ao poeta, novelista, dramaturgo, ensaísta e crítico. O autor, que completaria 100 anos em 14 de setembro, é um dos motevideanos mais ilustres, pois “amava Montevidéu, viveu Montevidéu, percorreu Montevidéu, falou das ruas de Montevidéu e do que sentia, do que lhe transmitiam”, explica a Efe Elizabeth Villalba, diretora de Turismo de Montevidéu, que o descreve como “grande embaixador da cidade”.

Mural do artista de rua José Gallino, retratando o escritor uruguaio Mario Benedetti, na Plaza Zelmar Michellini, citado no livro de Benedetti 'La Casa y El Ladrillo', em Montevidéu em 24 de maio de 2020 Foto: Eitan ABRAMOVICH / AFP

 

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“É um autêntico montevideano que escrevia a respeito das coisas simples da vida, a amizade, o amor, a cidade, a solidariedade, as coisas muito comuns”, detalha Elizabeth, que acrescenta que “qualquer pessoa pode se sentir próxima da obra de Benedetti” e, portanto, caminhar de mãos dadas com ele pelas ruas da capital.

 

É isso o que se propõe a "Mirada Benedetti", projeto promovido, por ocasião do centenário do escritor (1920-2009), hospedado no site de Turismo da Prefeitura de Montevidéu, com o qual locais e estrangeiros podem visitar - virtual ou pessoalmente - recantos retratados em suas histórias ou poemas.

 

“Hoje ele vai continuar construindo pontes entre Montevidéu e os estrangeiros, que poderão conhecê-la por meio de sua própria obra e isso é incrível”, lembra Elizabeth, que descreve Benedetti como “um símbolo” da “identidade” montevideana.

 

De Tacuarembó aos bairros montevideanos

 

O pequeno

Mario Orlando Hamlet Hardy Brenno Bennedetti Farrugia

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viveu apenas quatro anos no departamento (província) de Tacuarembó, os dois primeiros em seu povoado natal e mais dois na capital do departamento, antes de se mudar com sua família para Montevidéu. Passou boa parte de sua vida em seus bairros, retratou-os em sua obra como poucos, seu vai e vem cotidiano e seu povo, e a amou à distância até ao idealizá-la quando passou pelo exílio político durante a ditadura cívico-militar (1973-1983).

 

Cerca de 600 referências a Montevidéu foram encontradas em seus 80 livros, segundo relata a Efe o jornalista, escritor e arquiteto argentino Alfredo Fonticelli, autor em 2006 do primeiro “Guia Benedetti”, junto com a Fundação que leva o nome do poeta, que propunha seguir seus passos por vários bairros.

 

Em sua opinião, há três “Montevidéu” na obra de Bendetti: a de “A trégua” (1960), uma cidade “que Mario encontra aos 40 anos, o lugar onde vive e trabalha”, onde o autor escreve ao sair do escritório, nas praças ou nos cafés; a “do exílio, que é imaginária”; e uma terceira, “que é a do ‘desexílio’, como diria Mario, que é quando ele retorna e vive esse reencontro”.

 

O criador de “Poemas de la oficina” (1956) ou “Rincón de haikus” (1999) cresceu no bairro do Capurro, cujo parque homônimo, conforme narrado em seu romance mais autobiográfico, “A borra do café” (1991), “era como uma cenografia montada para um filme de bandidos, com rochas artificiais, semicavernas, caminhos tortuosos e com ervas daninhas ” durante sua infância.

 

Outras áreas da capital onde morou foram Punta Carretas ou Malvín, embora sua última residência estivesse localizada no coração da cidade, na Rua Zelmar Michelini, nome do político e seu grande amigo que foi assassinado em Buenos Aires dentro da

Operação Condor

organizada pela aliança das ditaduras latino-americanas nos anos 70.

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A entrada do CaféBrasileiro, um dos lugares que o poeta Mario Benedetti frequentava, em Montevidéu Foto: EFE/ Federico Anfitti

 

Realidade ou ficção?

 

Realidade e ficção se confundem nas milhares e milhares de páginas escritas por esse funcionário de escritório que trabalhou em Ciudad Vieja e cujo chefe, um viúvo como Martín Santomé, serviu de inspiração para traçar o personagem.

 

Santomé, assim como Benedetti, sentava-se nos bancos da Plaza Matriz, o que foi descrito pelo autor dessa maneira: “Fiquei um bom tempo contemplando a alma agressivamente sólida do Cabildo, a cara hipocritamente lavada da Catedral, o desalentado cabecear das árvores”.

 

O poeta escrevia “em uma mesma mesa” do Café Sorocabana, também no centro histórico de Montevidéu, na hora do almoço porque tinha apenas “duas horas ao meio-dia” e não podia “voltar no 142” para sua casa em Malvín. Nesse bar envidraçado da Rua 25 de Mayo, Laura Avellaneda, protagonista de “A trégua”, costumava passar seu tempo livre antes de entrar na vida de Santomé.

 

Benedetti também passava com frequência pelo Palacio Salvo, o colosso que marca o início da Avenida 18 de Julio e que foi até 1935 a torre mais alta da América Latina. E, mais uma vez, incluiu uma menção em seu romance mais famoso: “Aprendi a gostar desse monstro folclórico que é o Palacio Salvo. Por algum motivo está em todos os cartões postais para turistas.É quase uma representação do caráter nacional: descarado, sem sal, sobrecarregado, simpático. É tão, mas tão feio, que deixa a gente de bom-humor”.

 

"Quem pinta sua aldeia pinta o mundo. É verdade, mas, claro, Benedetti é um cara que anda muito para trás e para a frente com o leitor. Ele consegue ser popular, consegue ser profundo. Isso é o que o torna muito universal e muito profundo. ", comenta Fonticelli quanto a enorme difusão da de Benedetti.

 

Essa “aldeia” retratada por Benedetti, para muitos cinzenta e suja, para outros repleta de árvores e situada junto a um rio que parece mar, era a sua, ainda que não houvesse nascido nela. Como ele escreveu em seu poema “Metrópolis” (“Adioses y bienvenidas”, 2005): “que metrópole estranha/ eu gosto/ Montevidéu é minha maravilha (sic)”. / TRADUÇÃO DE ROMINA CÁCIA

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