PUBLICIDADE

Milo Manara retrata Caravaggio em história em quadrinhos

O desenhista italiano revê o artista em um projeto ambicioso, com dois volumes; o primeiro, 'A Morte da Virgem', já chegou às livrarias

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

Caravaggio (1571-1610) tem desafiado historiadores de arte, biógrafos, críticos e cineastas há quatro longos séculos. Muitos livros foram escritos a respeito do pintor barroco italiano que, a despeito de suas telas construídas com sensibilidade, era um tanto violento – andava sempre com uma faca encostada ao corpo que trazia a inscrição “sem medo, sem esperança”. Além de cético, Caravaggio seria o que hoje, de forma banal, chamam de bipolar. Gentil com prostitutas e marginais, era temperamental e capaz de hostilizar seus protetores do clero, provocando a sociedade a ponto de morrer sozinho e doente, aos 38 anos, em Porto Ercole. O motivo: Caravaggio se escondia da Justiça, que o perseguiu por ter assassinado um homem.

É esse lado de aventureiro irresponsável, briguento e beberrão que parece ter despertado o desejo do desenhista italiano Milo Manara de retratar o artista numa história em quadrinhos. Ambiciosa e em dois volumes. O primeiro, A Morte da Virgem, já chegou às livrarias. Cobre desde a chegada de Caravaggio em Roma, em 1592, até 1606, quando, aos 35 anos, foge da cidade escondido numa velha carroça, após matar a golpes de espada o cafetão e jogador Ranuccio Tomassoni. Por ciúme, segundo o filme Caravaggio, do inglês Derek Jarman (1942-1994), que nele pinta o artista como um gay mal resolvido. Jarman insinua um caso amoroso entre ele e Ranuccio, modelo de suas pinturas ao lado da prostituta que explorava.

Ilustração do livro de Milo Manara,'Caravaggio, a Morte da Virgem' Foto:

PUBLICIDADE

Manara descarta essa versão. Não há na primeira parte de sua HQ referências à homossexualidade de Caravaggio. O desenhista, justificando essa opção, evoca a primeira biografia do artista, escrita por seu contemporâneo e também pintor Giovanni Baglione (1566-1643), um maneirista rival que retratou Caravaggio como o próprio diabo num encontro sexual profano com o Cupido, interrompido por um anjo.

O quadro de Baglione, Amor Sagrado versus Amor Profano (1602), seria uma resposta à tela iniciada um ano antes por Caravaggio, Amor Vincit Omnia, hoje na Gemäldegalerie de Berlim, que mostra um insolente Cupido, escancaradamente sexualizado, que triunfa sobre tudo – a música, a ciência e a honra militar, representadas por instrumentos musicais, ferramentas de matemáticos e uma armadura jogada a seus pés.

Na contramão de Derek Jarman, Manara prefere aceitar a versão de que Baglione teria criado a história sobre a homossexualidade de Caravaggio para se livrar do rival – na época, uma acusação como essa poderia custar o pescoço de um gay. Manara usa excertos das biografias escritas pelos ingleses Andrew Graham-Dixon (Caravaggio: A Life Sacred and Profane) e Helen Langdon (Caravaggio: A Life) – entre elas a história da Virgem morta do título (uma prostituta que teria posado como a mãe de Jesus na tela A Morte da Virgem, hoje no Museu do Louvre).

Ilustração do livro 'Caravaggio, A Morte da Virgem' Foto: Reprodução

Curiosamente, Manara, cuja imagem de libertino foi fixada por representações explícitas da sexualidade feminina, parece comportado demais para ilustrar a vida de um devasso que, ao contrário do ilustrador italiano, dava maior atenção ao corpo masculino, copiando sem pudor os homens vigorosos que Michelangelo pintou no teto da Capela Sistina. Isso, claro, não atesta a homossexualidade de Caravaggio, até mesmo porque também Manara não cansa de desenhar, no primeiro volume da vida do pintor, o traseiro de Mário, o ajudante adolescente de Caravaggio. Em todo caso, a sintaxe visual de Manara parece hoje um tanto acadêmica, até mesmo tímida, quando comparada a Dave McKean, para ficar num único exemplo. Caravaggio, ao contrário, antecipou em quatro séculos a luz do cinema e a identidade siamesa que une a dramaturgia teatral aos quadrinhos.

A prova desse poder antecipatório está na tela Judite Decapitando Holofernes (reproduzida ao lado, em sua forma original e na versão paródica de Manara). O realismo pioneiro de Caravaggio, fruto do testemunho de decapitações históricas (como a de Beatrice Cenci), é reforçado pelo embate metafórico entre luz e treva, pelo chiaroscuro que o tornou célebre. Em Caravaggio, a decapitação se assemelha a uma castração – e Manara aceita a versão do biógrafo Andrew Grahan-Dixon, que reproduz um documento do Vaticano segundo o qual Ranuccio morreu com os testículos arrancados por Caravaggio numa luta de espadas. Manara, porém, foi menos realista que o rei. Resta esperar o segundo volume, que conta os quatro últimos e dramáticos anos de vida do pintor.

Publicidade

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.