Mário de Andrade, o parteiro das 'Cirandas' de Villa-Lobos

'Estado’ publica trechos de carta inédita do compositor ao poeta

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Por João Marcos Coelho
Atualização:

A “tempestuosa proximidade”, feliz expressão usada por Jorge Coli para caracterizar as relações entre Heitor Villa-Lobos e Mário de Andrade, esconde segredos até hoje. Mário reconheceu a genialidade e indicou caminhos ao Villa, como Flávia Toni mostrou em livro editado pelo Centro Cultural São Paulo (1987).

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As Cirandas, por exemplo, seu ciclo pianístico mais celebrado, nasceram em 1926 como um pedido “fictício” de Mário. Isso já era conhecido. Recentemente, Flávia e Manoel Aranha descobriram cartas e bilhetes de Villa a Mário, incluindo uma, inédita, na qual o compositor lhe fala das Cirandas

O lado musical de Mário tem sido pouco estudado. Flávia considera distorcida a imagem que o mundo musical ainda faz dele. “O mais comum é associar a campanha dele entre os compositores como sendo de índole nacionalista. Mário era um pesquisador da música e da literatura brasileiras. Sendo fluente nos dois ‘idiomas’, mas poeta e romancista, não compositor, é possível entender a atitude dele pelas conquistas no campo literário. Da pesquisa sistemática lendo os relatos dos viajantes, os nossos historiadores dos costumes, das práticas da sociedade e da formação do vernáculo, resultam obras como O Clã do Jabuti e Macunaíma, poesia e prosa que transpiram o programa que ele apregoa a seus interlocutores. O empenho, na criação musical, espelha a mesma natureza: estudar a criação espontânea e a performance do canto improvisado; conhecer as fontes europeias trazidas para o Brasil; analisar a contribuição dos compositores do século 19. Este é o programa do Ensaio Sobre a Música Brasileira, texto urdido com a análise do repertório de vários compositores - Villa-Lobos, H. Oswald, os irmãos Levy, L. Fernandez - e das 126 melodias que colecionara até 1928.”

"As Cirandas e em consequência as Cirandinhas, sem dúvida das coisas mais geniais do Villa, ele as deve a mim”, escreve o poeta Foto: Reprodução

Em um de seus artigos fundamentais para o Estado, onde escreveu entre 1934 e 1942, Mário clareia bem a questão do nacional e do nacionalismo. Publicado em 30 de outubro de 1934, A Música Popular e a Música Erudita reproduz conferência feita uma semana antes no Teatro Municipal, no 321º. sarau da Sociedade de Cultura Artística. "O nacionalismo é uma das invenções específicas das classes cultas. O povo nunca jamais é nacionalista. Poderá quando muito ser nacional (...) Essa fragilidade nacionalista, ou antes, essa força internacionalista do povo, se manifesta prodigiosamente clara na música popular. (...) A nacionalidade inconsciente da música popular, representante do povo, está sendo aproveitada pelo nacionalismo consciente dos compositores representantes das classes cultas. (...) É pois por causa deste nacionalismo novo que a canção popular lavadinha e vestida de roupagens aristocráticas, perdida a sua verdadeira função utilitária, se pavoneia agora nos salões e salas de concerto", completa em sua prosa deliciosa. 

Se começa falando da luta de classes no mundo da música, termina se perguntando "em que classe estaremos nós aqui". E responde: "Em nenhuma delas. Nós estamos na classe das Belas Artes. Este é o verdadeiro terreno de ninguém" (...) onde "tudo e todos nós nos fundimos na fraternidade piedosíssima da Beleza".Leia abaixo trechos da resposta do compositor, só agora trazida a público por Flávia Toni e Manoel Aranha:"Rio de Janeiro, 12 de abril de 1926

Caro Mário Atualmente estou escrevendo coisas que te vão interessar muito (...). "Escrevi uma longa série de 20 peças cujas formas e processos novos dei o nome de Cirandas. São todas para piano ou pequena orquestra; e por fim, uma outra série para canto e piano, intitulada Serestas. (...) Em tudo isso, venho completando o meu velhíssimo programa de escrever música regional, ou melhor, de escrever a música deste grande país, sem estilizá-la, nem harmonizá-la, nem tão pouco adaptá-la, no ambiente da técnica musical européia, tão diferente da nossa, que é vivida há séculos nos nossos choros. (...) "É verdade que até a minha Prole do Bebê nº 1 - (1918) - escrevi dentro da técnica européia, vários temas inteiramente brasileiros, porém, sempre estudando a forma que pudesse ver-me livre desta influência cascuda. Já no meu Quarteto Simbólico comecei a me ver livre desta terrível peia, aonde no meu Sexteto Misto - 1921 - sacudo por completo as asas, e realizo as minhas duas (queridas) Sinfonias Indígenas ou Selvagens (1922) - das quais nasceram os meus Mafuás Dançantes, Nonetto, Malazarte, os Choros, Cinemas, Cirandas, Serestas e não sei o que será mais do teu Villa- Lobos"

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