Marina Colasanti relança seu primeiro livro e escritores relembram suas estreias literárias

Marina Colasanti, Sérgio Sant'Anna, Ignácio de Loyola Brandão, Raimundo Carrero, Ricardo Lísias e Rafael Gallo falam sobre seus primeiros livros

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Foto do author Maria Fernanda Rodrigues
Por Maria Fernanda Rodrigues
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Aos 26 anos, Marina Colasanti, então redatora e cronista do Jornal do Brasil, escreveu um livro triste e bonito sobre solidão. Sua ideia era mostrar como o sentimento acompanha o indivíduo desde a infância até o fim. 

Ela chegava em casa tarde, colocava o papel em sua máquina Olivetti e escrevia seguindo uma estrutura que planejou bem. Os capítulos pares seriam cronológicos, com flashs da infância na África, onde nasceu, da Itália, onde cresceu, da primeira passagem pelo Brasil, para onde veio aos 10 anos, e de outros momentos. Os ímpares se passariam no presente. Sempre o mesmo tema: a solidão. Sempre a mesma voz: a dela. 

Marina Colasanti estreou na literatura com 'Eu Sozinha', que volta às livrarias 50 anos depois do lançamento Foto: Fabio Motta/Estadão

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Ela mandou os originais de Eu Sozinha para Rubem Braga, dono da editora Sabiá. Na carta, o escritor e editor disse que tinha gostado muito, mas que não ia publicá-lo. Que o livro até seria bem-recebido pela crítica, mas não ia vender nada. Ele sugeriu que ela desse títulos aos capítulos e os fosse publicando em jornais e revistas. A recusa não foi agradável, ainda mais porque foi Braga quem pediu para ver o livro, que ele sabia que estava sendo escrito.

“O livro ficou cinco anos na gaveta, e isso é muita coisa para um autor jovem. Mas eu não segui nenhum dos conselhos porque percebi que ele não tinha entendido o livro. Ele achou que era um livro de crônicas. Se eu tivesse publicado cada capítulo separadamente, eu teria desmontado sua estrutura. Um livro de crônica eu faria depois; fiz vários”, conta a escritora, aos 80. 

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Quando a obra saiu, em 1968, pela Record, as pessoas também não entenderam a proposta da autora, e ela não se surpreendeu. “É provável que o erro tenha sido meu. Por discrição de temperamento, não deixei muito evidente que ele tinha uma estrutura diferente. As pessoas se confundiram porque eu tinha crachá de cronista.”

A tiragem se esgotou, Marina deixou o livro pra lá e só voltou a ele no ano passado, quando a Global sugeriu uma nova edição. Eu Sozinha voltou às livrarias recentemente e Marina gostou de rever sua obra de estreia. “Fiquei satisfeita porque ele não está em desacordo com o que veio depois. O livro tem uma estrutura ousada, rigorosa, que seria a minha maneira de trabalhar dali para a frente. E já tem uma voz que pode ser identificada com a minha. Não houve um salto, mas houve, eu espero, um aprimoramento livro a livro”, diz. 

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Encarar os primeiros escritos, para quem já escreveu e publicou tanto depois daquele livro de estreia ainda do começo da juventude, e até ganhou prêmios, pode não ser fácil. Marina Colasanti reforça que não foi uma vontade dela relançar Eu Sozinha agora, 50 anos depois de seu lançamento, mas da editora. 

“A reedição se justifica muito, não só pela fabulosa ficcionista que ela se tornou, como também por tudo o que o livro simboliza: uma reflexão intimista sobre o cotidiano da mulher na sociedade brasileira, num tempo em que ainda era raro tratar dos diferentes desafios femininos de se estar no mundo. De uma atualidade impressionante”, comenta Gustavo Henrique Tuna, editor da Global.

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Atual mesmo, em vários aspectos, e coerente. “É um livro que me representa de forma bastante acertada, tem um retrato meu inicial que é melhor que uma selfie”, diz Marina. E não há, ali, nada do que se envergonhar. Pelo contrário. “Não encontrei nada que eu dissesse ‘ai, meu Deus, que coisa mais infantil, fora da curva’. Ele se insere no restante do trabalho de uma forma bastante harmoniosa.” 

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O volume que chega agora às livrarias ganhou apenas um texto de apresentação, feito pela autora. O resto está como no original. Marina não muda nada quando reedita suas obras. “Não quero reescrever a vida, não quero reescrever o que já escrevi. Quero escrever para a frente.”

Como Eu Sozinha, há muitos e muitos livros de estreia que permanecem escondidos nas estantes de seus autores e de colecionadores ou perdidos em sebos. Uma única edição de O Sobrevivente, primeiro livro de Sérgio Sant’Anna, é encontrada na Estante Virtual – e custa R$ 250.

“R$ 250? Não brinca!”, diz, assustado, aos 76, o autor que lançou essa obra por conta própria em 1969, quando tinha 27 anos, e que ainda guarda uns cinco exemplares em casa. 

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Nunca houve uma reedição desse livro que até teve uma boa aceitação na época, ele recorda, e lhe rendeu uma bolsa para o International Writing Program da Universidade de Iowa, que foi muito importante para a sua carreira. Sérgio nunca quis e não quer. “Considero um livro de principiante. A partir do seguinte, Notas de Manfredo Rangel, Repórter (1973), é que entrei mesmo na literatura”, conta um dos melhores contistas brasileiros. 

Mas o que mudou? “Eu tive um domínio muito maior do métier, comecei a fazer uma literatura mais contemporânea, de vanguarda. O Sobrevivente era um livro tímido, com contos muito ligados à subjetividade, a estados de alma, coisas desse tipo. Depois eu me extroverti. Não que eu recuse a subjetividade, mas considero aquela de O Sobrevivente muito extremada.”

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Um pouco antes de Marina lançar Eu Sozinha e Sérgio, O Sobrevivente, Ignácio de Loyola Brandão apresentava seu primeiro livro de contos aos leitores que o acompanhavam na Última Hora. Depois do Sol foi publicado em 1965, pela Brasiliense, depois de ser recusado por 13 editoras – e Loyola não sabe até hoje se Caio Graco gostou mesmo do livro ou se o fato de ele ter derrubado café nos originais, tão nervoso que estava naquele encontro com o editor, foi de fato auspicioso, como Graco disse na ocasião. 

'Depois do Sol', primeiro livro de Ignácio de Loyola Brandão, de 1965, ganhou nova edição em 2014 Foto: Daniel Teixeira/Estadão

Uma grande tiragem de 5 mil exemplares foi distribuída, os livros foram sendo vendidos, a tiragem se esgotou, o autor escreveu outros títulos e a vida seguiu seu rumo. “E ele foi ficando esquecido, esquecido, esquecido. Quando vi, já tinham se passado 40 anos”, comenta o cronista do Caderno 2.

Uma nova edição da obra voltou às livrarias, também pela Global, em 2014. O autor ficou na dúvida se mexia nos contos, e decidiu que se era para fazer algo novo que fosse um making of dos textos. “Comecei a lembrar de como escrevi cada história, foi muito emocionante.”

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Foi emocionante também o reencontro com “um Ignácio jovem”. O livro não é perfeito, reconhece. Para ele, há problemas sobretudo com os diálogos. “Mas é o livro que eu tinha escrito. Acabou, foi embora. Os outros vieram depois. Sou responsável por toda besteira e acerto que tem ali.” Loyola diz ainda que Depois do Sol já antecipa o que viriam a ser seus títulos seguintes, e que ele foi o primeiro passo para Bebel Que a Cidade Comeu (1968), de que ele gosta mais.

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Por vezes há um investimento tão grande na escrita do primeiro livro, ou a repercussão é tamanha que o autor tem um bloqueio criativo. Aconteceu com o pernambucano Raimundo Carrero

Ele escreveu A História de Bernarda Soledade – A Tigre do Sertão aos 21 anos. Àquela altura, já tinha terminado outras quatro obras: A Furna do Cão, A Prisioneira do Castelo e Vida de Silêncio não chegaram a ser submetidos a editoras; O Domador de Espelhos foi rejeitado pela Civilização Brasileira por imaturidade. Com prefácio de Ariano Suassuna, Bernarda Soledade foi lançado pela Artenova em 1975 e marcou a estreia festejada de Carrero na literatura.

“Tenho uma relação de muito afeto com essa obra. Fico sempre muito inquieto, mas percebo que apesar dos pesares – pouca idade e trabalho intenso no começo da vida profissional – trata-se de uma personagem em que trabalhei com muita intensidade e muita coragem. Foi muito bem recebida pela crítica a ponto de me deixar vazio, sem nada para escrever. Um tormento”, recorda o autor, aos 70 anos. O bloqueio criativo foi superado seis anos depois, “com muito empenho e sacrifício”, com As Sementes do Sol.

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Com o passar do tempo, o livro de estreia de Carrero ganhou outras três edições pela Bagaço, encontradas ainda em sebos, foi publicado no exterior e, em 2005, foi incluído em O Delicado Abismo da Loucura, volume publicado pela Iluminuras com suas novelas.

Fora das livrarias há alguns bons anos, Cobertor de Estrelas, o primeiro livro de Ricardo Lísias, de 1999, deve ganhar uma nova edição no final do ano pela Alfaguara. O volume trará, ainda, o segundo romance do autor, Duas Praças. “Eu gosto do livro. Tem ali o início de tudo, em um trabalho que representa de fato o que eu continuaria depois, até hoje”, conta Lísias, de 43 anos, que não vai mexer no texto original.

O primeiro livro de conto e o primeiro romance de Rafael Gallo foram premiados Foto: Willian Olivato

Quem tem uma história curiosa com seus livros de estreia é Rafael Gallo. Ele estreou com Réveillon e Outros Dias, de contos, vencedor do Prêmio Sesc em 2011. Dali partiu para o romance – e Rebentar ganhou o Prêmio São Paulo em 2016. Aos 36 anos, o autor, que já trabalha em sua terceira obra, diz não saber como vai lidar com esses livros no futuro – se ainda vai gostar deles ou detestá-lo, afinal, será uma outra pessoa e o mundo também poderá ter mudado, dando outros sentidos para as histórias. 

“Mas acho que eu não mudaria substancialmente os livros, como, por exemplo, retirar algum conto. Ainda que, se fosse hoje, eu não pensaria em escrever e publicar algumas das histórias ali, fico feliz de naquele momento ter feito isso. É como aquelas pequenas imprudências que cometemos quando jovens e, mais tarde, nos parece descabido repeti-las, mas também sorrimos ao pensar que nos permitimos tais experiências. Eu não tiraria nenhum conto do primeiro livro pelo mesmo motivo que não tiraria essas vivências da minha vida, ainda que pudesse: têm sua graça, sua parte no todo que sou”, conta.

EU SOZINHA Autora: Marina Colasanti Editora: Global (114 págs.; R$ 45)

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