A chilena Marcela Serrano se popularizou na literatura de língua hispânica como romancista. Até 2000, já era autora de cinco romances e nunca havia escrito um conto. Foi quando veio a encomenda do jornal El País. E é 2 de Julho, seu conto inaugural, escrito na época como um desafio, que fecha o volume com 20 narrativas breves de Doce Inimiga Minha.
Serrano tem se destacado como escritora que percorre e mapeia vozes femininas. São elas que animam os relatos de Nós que Nos Amávamos Tanto, sua estreia literária, até o romance mais recente, Dez Mulheres. O universo feminino é igualmente predominante nos contos, seja a partir das protagonistas ou na forma de sombras e obsessões de personagens masculinos. Mas, ainda que sua escrita se desloque no tempo e no espaço, percorrendo gerações e diferentes territórios, parece haver uma chave-mestra para os registros íntimos que investiga. A opressão. Trata-se, sobretudo, de personagens, majoritariamente mulheres, que se oprimem entre si, a si mesmos, ou são oprimidos em seus ambientes, modos de existência e pelo poder do homem.
É o caso de Ana María, de A Égua. Ao dar os primeiros passos rumo à meia idade, ela se vê assombrada pela existência das “mulheres jovens”, tentações que pululam diante do marido, malha o corpo como se assim pudesse retardar a perspectiva do abandono, e tenta se agarrar à ideia de que a ternura venha a ser uma boa substituta para o desejo que se extingue no outro.
Já Abricós e Abóboras fala de um paradoxo importante e atual: alguém que cultiva a vida analógica, presencial, natural, no contrafluxo das possibilidades tecnológicas, com suas facilidades e seu isolamento. “O mundo está aí fora para ser devorado”, dizia Leticia, “e não para nos escondermos dele”. Leticia é um indivíduo que resiste. Mas até que ponto é possível resistir individualmente e não ser engolido pelo sistema? A mesma pergunta permeia o enredo de Cerca Elétrica, que discute do isolamento imposto pela violência urbana.
Sem Deus Nem Lei esmiúça tensões entre mãe e filha, e traz à tona o debate, ainda longe de ser esgotado, sobre a legalização do aborto em caso de estupro. Laura Gutiérrez recorda, a respeito do próprio casamento, “o infinito prazer que sentiu ao saber que a partir daquele momento pertenceria a outrem, que a lei assim o estabelecia”. Mas ela não sabe quando nem como “a marginalidade” venceu e o feminismo emergiu, desestabilizando certezas que a ancoravam. Sem perder de vista o conflito geracional, o corpo feminino e as coerções que o atravessam são colocados em evidência.
O conto Doce Inimiga Minha foi escrito em 2004 para uma edição espanhola que reuniu diferentes autores em torno do Quixote de Cervantes. Nele, Serrano dá voz a Aldonza Lorenzo, lavradora corpulenta e sem atrativos convertida em Dulcineia del Toboso, musa eternizada pelo Cavaleiro da Triste Figura. “Minha língua me venera, e, se é certo que um dia um Deus criou a mulher a partir da costela do homem, também o é que meu nascimento pende das palavras de outro”, ela diz, orgulhosa por ter sido elevada ao status de rainha e ciente da descoincidência entre a identidade real e a inventada, idealizada pela imaginação de um delirante.
Prosadora experiente, Marcela Serrano demonstra segurança e eficiência para dispor de uma série de problemas e perfis que desfilam por nossos dias. No entanto, em termos de linguagem e estilo, a uniformidade se impõe. Encerrada a leitura, pode-se oscilar entre a impressão de ter percorrido um conjunto que perde potência justamente pelo excesso de controle, pela predominância da voz da autora sobre as demais, e de ter estado diante de um volume irregular.
Assim, a passagem de Milka para Irma ou Pascuala, mulheres, a princípio, tão distintas entre si, personagens de contos e enredos também distintos, soa um tanto monocórdica. Há exceções, como Charquinho de Água Turva, um dos textos mais complexos, repleto de memórias e sensorialidades, e 2 de Julho, protagonizado por um homem cujos “quarenta anos eram tão grisalhos como ele”, subordinado pelo desejo por corpos femininos, onde a mão da autora, talvez ainda hesitante, parece mais solta.
DOCE INIMIGA MINHAAutora: Marcela Serrano Trad.: Joana Angélica D’Avila Melo Editora: Alfaguara (192 págs., R$ 25,90; R$ 19,90 o e-book)