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Livros reúnem trabalho na imprensa, pouco conhecido de Machado de Assis e Eça de Queiroz

'Baladas Dr. Semana' e 'Ecos do Mundos' destacam o olhar irônico com que os escritores observavam as sociedades brasileira e mundial

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O jornalismo sempre foi uma ótima forma de os escritores praticarem o exercício de seu estilo ou mesmo, em situações-limite, para suprir necessidades financeiras. Ao longo dos anos, alguns viram seu imenso talento ser desperdiçado; outros, porém, revelaram a vocação necessária para vencer a brevidade temporária do jornal para alcançar a perenidade do livro. É o caso de dois dos maiores autores em língua portuguesa, Machado de Assis e Eça de Queiroz, cuja importância do estilo e o valor histórico de seus textos justificam a reunião de parte de sua produção jornalística em diversos volumes.

É o que fez a editora Carambaia, que lança agora Ecos do Mundo, antologia de artigos publicados por Eça em jornais entre 1871 e 1899. E também a Nankin Editorial, que promete para o fim do mês um lançamento ousado e bem-vindo: Badaladas – Dr. Semana, caixa com dois volumes que somam mais de 1.500 páginas e que traz todas as crônicas que Machado publicou na revista Semana Ilustrada entre 1869 e 1876, com o pseudônimo de Dr. Semana.

Dupla. De um lado, as crônicas de um pseudônimo, de outro, olhar aguçado de quem vive no interior Foto: Baptistão

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Duas coleções com um precioso material, não apenas pela qualidade de suas palavras, mas principalmente pela raridade: nunca esses escritos de Machado tinham sido reunidos em livro, assim como as crônicas de Eça, especialmente as que analisam a política internacional do final do século 19, foram reunidas em um volume. “Todos conhecem o Eça pensador da sociedade, da política e da mentalidade portuguesas”, observa o escritor Rodrigo Lacerda na apresentação de Ecos do Mundo, do qual também é organizador. “Menos conhecido é o Eça pensador do mundo. E, no entanto, seus artigos para jornais e revistas, quando tratam de outros países que não Portugal, e quando analisam a política internacional nas décadas finais do século 19, deixam evidente essa outra dimensão do grande escritor.”

Para a antologia, Lacerda selecionou textos que Eça (1845-1900) publicou no periódico mensal As Farpas (1871-1872), que foi o ponto de partida, seguindo com as colaborações ao jornal carioca Gazeta de Notícias, com o qual o escritor manteve sua mais longa colaboração jornalística (1880 a 1897). Ele também organizou as crônicas a partir dos países retratados por Eça, com exceção de Portugal. E o primeiro é justamente o Brasil, que o autor via com simpatia, especialmente quando comparava com sua terra natal – logo no primeiro artigo, O Brasileiro, Eça cutuca os portugueses que retornam, depois de uma temporada morando no Brasil: “Nós somos o germe, eles são o fruto: é como se a espiga se risse da semente. Pelo contrário! O brasileiro é bem mais respeitável, porque é completo, atingiu o seu pleno desenvolvimento; nós permanecemos rudimentares”. 

Mas nem sempre o escritor era todo sorrisos quando observava brasileiros – um bem ilustre, D. Pedro II, foi alvo de uma crônica implacável, demolidora, em 1872. Foi quando o monarca fez uma viagem a Portugal e Eça ridicularizou suas roupas, seu chapéu, seu gosto por línguas estranhas, sua mala e seus súditos. Para o escritor, D. Pedro revelava-se uma figura confusa, pois viajava pela Europa ora se apresentando como imperador, ora como cientista – e sem convencer em nenhum dos papéis.  A seção dedicada ao Brasil termina com uma saborosa crônica dedicada aos estudantes que provocaram um pandemônio quando da visita da atriz Sarah Bernhardt ao Rio de Janeiro, em 1897 – reverenciada como diva, ela passeou pela cidade em uma carroça, puxada por eles. “Em Espiritismo, a cética visita de Eça e seu amigo brasileiro, Eduardo Prado, a um centro espírita termina de modo surpreendente”, acrescenta Lacerda. “E, em Um Artigo do Times para o Brasil, o escritor ironiza um artigo no qual o eminente jornal inglês dava a receita para que nos tornássemos uma nação desenvolvida.”

O bom humor se destaca também nos escritos que Machado de Assis (1839-1908) publicou na revista Semana Ilustrada, entre junho de 1869 e março de 1876. Sob o pseudônimo de Dr. Semana, ele escreveu cerca de 300 crônicas para a coluna intitulada Badaladas. Como essa alcunha foi usada por outros autores na revista, os estudiosos da obra de Machado evitavam reproduzi-las em suas antologias, temendo conferir-lhe uma falsa autoria.

A caixa que a Nankin Editorial coloca nas livrarias no final do mês é fruto da pesquisa detalhada e persistente da professora Silvia Maria Azevedo, da Unesp de Assis – ciente do problema, ela se debruçou sobre a coleção completa da Semana Ilustrada, felizmente preservada na Biblioteca Nacional, no Rio, a fim de selecionar as crônicas autenticamente machadianas.

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Para chegar a essa certeza, Silvia cruzou várias fontes, como os escritos de Machado antes, durante e depois daquele período em que assinou como Dr. Semana, além de dados referentes à sua vida, o que permitiu esclarecer certas alusões biográficas, por vezes obscuras, presentes nas Badaladas.

O resultado, além de uma caixa pesando um quilo, é um conjunto iluminado e divertido de diversos aspectos da vida social e política do Rio. Quando Machado assume a coluna, em 1869, ela ainda se chamava Pontos e Vírgulas. Para justificar a troca do título para Badaladas, o Bruxo do Cosme Velho já deu o tom: “Que diriam de um homem que, no tempo de calção e meia, usasse calça moderna, ou fosse apertar a mão do visconde de Jequitinhonha envergando a túnica de Catão? Era um disparate. Cada homem deve ser do seu tempo. Uma coisa é a calça, outra o calção; uma coisa é Catão, outra o visconde de Jequitinhonha. A época é parlamentar; e o símbolo do parlamentarismo é a campainha que, entre parênteses, está sendo muito agitada pelo presidente do Senado”.

Os dois escritores se somam nas diferenças

A rivalidade nasceu em 1878, quando Machado de Assis criticou, de forma implacável, O Primo Basílio, de Eça de Queiroz 

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Houve um momento em que a escrita de Machado de Assis se encontrou com a de Eça de Queiroz – e não foi agradável. Em 1878, quando o livro O Primo Basílio, do escritor português, começou a ser comercializado nas livrarias do Rio de Janeiro, foi um sucesso de público – os leitores se encantavam com o estilo realista da escrita.

Machado, porém, não fez coro aos aplausos – em uma crítica implacável, ele condenava a “reprodução fotográfica e servil” da realidade que o colega português teria herdado do francês Émile Zola. Na verdade, como não aprovava o tom de erotismo do romance de Eça, Machado aproveita para negar um apoio à escola literária do realismo – para ele, a única personagem coerente do livro é a chantagista Juliana.

Em resposta ao ataque, Eça escreveu o ensaio Idealismo e Realismo, em que oferece um texto polêmico, marcado pelo azedume e pela polêmica. O certo é que, nesta troca de farpas, os dois autores ganharam individualmente, mesmo na diferença. “Ambos olham para Flaubert e percebem coisas distintas”, observa o historiador Leandro Karnal, colunista do Estado. “Machado caminhou sempre para um afastamento quase niilista de valores consagrados. Eça terminou mais conservador, louvando família, trabalho e pátria no último texto, As Cidades e as Serras. Os estilos são diferentes. O tom reflexivo e dialógico com o leitor é, exclusivamente, machadiano. A ‘denúncia social’ é mais Eça.”

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Sérgio Augusto, também colunista do Estado, aponta para as diferenças que somam. “Machado, realista mais moderno e ousado, sem o ranço naturalista derivado de Zola, que tanto o incomodava, foi melhor contista que Eça, mas nem os portugueses fecham questão sobre a eventual superioridade de seu patrício como romancista. Para mim, como, aliás, para muitos autores, Machado é inexcedível.” 

Escreve Machado

“Ninguém chama, para ver um doente, médico que não seja formado. Nem entrega... ...processo senão a legista que possua um título. Isto é: Não se confia a saúde, nem as algibeiras, senão a quem tenha estudos competentes. Por que não acontecerá o mesmo em política? Há muita gente que aprende política na rua do Ouvidor, ou no café Carceller. De maneira que o governo dos Estados, objeto que tem feito queimar as pestanas dos Montesquieu e dos Guizot, aprende-se, entre nós, entre dois charutos de Havana e um chá no hotel dos Príncipes.”

Escreve Eça

“Quando foi que a universidade teve jamais a curiosidade e o respeito da toilette? Ela que ainda... ...há pouco levava ao cárcere os estudantes que usavam colarinho! Ela que reprovava os estudantes que entravam nas aulas com luvas! Ela que proibia em Coimbra os estabelecimentos de banhos! Ela que, destinada a bacharelar as novas gerações, conseguia sobretudo... sujá-las! E abespinha-se porque Ele foi ver um capelo – ele viajante, ele Pedro, ele espectador, ele turbamulta – de jaqueta e chapéu braguês!”

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