Livros infantis abordam o tema do assédio sexual e incentivam diálogo familiar

Também destinadas ao público infantil, obras recentes abordam o assunto com leveza

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Por Bia Reis
Atualização:

Olívia é adolescente e vai sozinha de ônibus para a escola. Um dia, no caminho que faz a pé até o ponto, ela para por um instante para dar informações a um motorista. O homem abre a porta do carro, e a garota percebe que ele está sem a calça. Chocada, Olívia sai correndo. E se cala.

A história da baleia Leila é indicada para leitores a partir de 8 anos Foto: Editora Abacatte

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Leila, a baleia, adora vestir biquíni e nadar por aí com seus longos cabelos. Vira e mexe, encontra em suas andanças pelo mar seu vizinho Barão, o polvo. Ele lhe rouba um beijo, a segue, a incomoda. Sussurra frases em seu ouvido, lhe promete coisas, mexe na alça do seu top. Leila também se cala.

Olívia e baleia são, respectivamente, personagens de Minha Vida Não É Cor-de-Rosa, de Penélope Martins (Editora do Brasil), e Leila, de Tino Freitas e Thais Beltrame, livros que abordam o assédio, uma das muitas questões delicadas e difíceis de se tratar, em especial com crianças e adolescentes. Em novembro, Minha Vida Não É Cor-de-Rosa conquistou o primeiro lugar na categoria juvenil do Prêmio Literário da Fundação Biblioteca Nacional, um dos mais prestigiados do País.

Nos dois casos, os autores acertam em cheio: conseguem tratar com leveza de um tema duro, respeitando o nível de compreensão do leitor para o qual se dirige. E vão além. Não tratam apenas de assédio - falam também de amizade e confiança. E podem abrir as portas para conversas em casa e onde mais se fizer necessário. 

Em Minha Vida Não É Cor-de-Rosa, Penélope se debruça sobre questões comuns da adolescência - o primeiro beijo, o primeiro namorado, a briga com a melhor amiga -, sem perder de vista o contexto das redes sociais, e chega a temas mais espinhosos, como o assédio a meninas e meninos. O livro é indicado pela editora para leitores a partir dos 14 anos.

'Minha Vida Não É Cor- de-Rosa'. Ilustração de Mara Oliveira Foto: Editora do Brasil

Na história, a personagem principal - cujo nome só é revelado no fim da história, porque pode ser Olívia, mas pode ser o de qualquer menina - mora com os pais, com quem tem uma boa relação. É independente, responsável e gosta de ouvir músicas “antigas”, como Caetano Veloso e Rita Lee. Mas, mesmo com toda abertura que tem em casa e com as amigas, não consegue contar para ninguém quando é vítima de assédio no meio da rua.

“É um livro absolutamente ficcional, mas, de um modo geral, é muito próximo da minha adolescência. Vivi duas situações de assédio quando era muito novinha. Eu tinha 11 anos, morava em um bairro distante, na periferia de São Bernardo, e ia para a escola de ônibus de linha”, conta Penélope. “Eu me senti culpada, envergonhada e, para a época, tive uma conversa ampla com meus pais. Minha família tinha uma certa liberdade para tratar de determinados assuntos, mas em outros aspectos não se afastava de uma família conservadora.”

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No livro, Olívia também acaba conseguindo falar sobre o que viveu, o que alivia sua dor. E quando sofre uma segunda situação de assédio, consegue reagir e é acolhida.

Palavras e imagens. Indicado pela editora para leitores a partir de 8 anos, Leila é um livro ilustrado, desses em que imagens e texto se relacionam para contar a história. No projeto gráfico, Thais trabalha com a página dupla, tanto na horizontal quanto na vertical, como se não houvesse margem separando o lado esquerdo do direito.

Nas sucessivas abordagens do vizinho, Leila quer pedir socorro, mas não consegue. E certa hora, em que estão apenas os dois, Barão corta os cabelos que a baleia tanto amava. “Eu gosto assim, pequena”, ele diz. “Pequena, o que aconteceu aqui será nosso segredo! Não diga a ninguém!”

Leila mergulha então numa tristeza profunda e desiste de nadar. O luto e o resgate da baleia com a ajuda de amigos marinhos são narrados por meio de uma sequência de três páginas duplas verticais sem texto. Aqui, o leitor tem de girar o livro - da horizontal para a vertical - para fazer a leitura das imagens, e é esse movimento que dá profundidade ao mar, que faz o leitor sentir a queda e a tristeza profunda de Leila.

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Ainda presa em uma profusão de sentimentos, a baleia encontra novamente Barão. E consegue falar tudo o que queria ter dito. É por meio da fala que Leila se liberta.

“O livro deixa clara a importância da voz. É preciso nos conhecermos, ouvirmos nossa própria voz”, diz Tino, que conta que a vontade de escrever sobre assédio surgiu após a visita a uma escola, em que teve a sensação de que uma das crianças sofria violência.

No livro, as ilustrações são como uma lente fotográfica, e Thais se aproveita de ângulos inusitados. Ora Leila nada no imenso mar, ora surge dentro do olho do Barão, pequena e frágil, ora o vizinho aparece imenso, ora vemos apenas um de seus tentáculos. É pelas imagens que descobrimos, por exemplo, o tamanho do Barão e como Leila se sente diminuída com a violência.

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Análise de Rosely Sayão: Leitor encontra identificação e sabe que não está só

É importante que a criança e o adolescente tenham disponível literatura sobre questões como assédio porque, ao ler, eles encontram identificação. É bom para eles saberem que não estão sozinhos, que tem gente que entende o que se passa com eles. Algumas crianças e adolescentes nem sequer conseguem compreender o que se passa em uma situação como o assédio. Se são os pais que dão esse tipo de livro, é uma porta aberta para a literatura mediar esse tipo de conversa e, quando necessário, os pais ajudarem os filhos.

OUTROS LIVROS SOBRE ASSUNTOS ATUAIS

ELEIÇÃO DOS BICHOS Autores: André Rodrigues, Larissa Ribeiro, Paula Desgualdo e Pedro Markun Editora: Companhia das Letrinhas (48 págs.,R$ 39,90) Cansada dos mandos e desmandos do leão, a bicharada decide fazer uma eleição. Mas como nem todo mundo sabe como funciona, as regras são apresentadas aos eleitores e, então, os animais se candidatam e fazem campanha. Em meio à história são apresentados conceitos como comício, debate e urna

A DEMOCRACIA PODE SER ASSIM Autores: Equipo Plantel e Marta Pina Editora: Boitatá (52 págs., R$ 39) O livro apresenta o conceito de democracia, tomando como base situações próximas do cotidiano de crianças de 8 a 10 anos, público para o qual o livro é dedicado. Os autores passeiam por temas políticos nessa obra que é a primeira de uma coleção de quatro volumes, editada pela primeira vez no fim dos anos 1970, em Barcelona

DOIS MENINOS DE KAKUMA Autora: Marie Ange Bordas Editora: Pulo do Gato (72 págs., R$ 54,60) A história é uma ficção criada a partir dos relatos que a autora ouviu quando realizou a Oficina de Histórias Visuais no campo de refugiados de Kakuma, no Quênia, entre 2003 e 2004. O livro fala da dor da perda, do medo e da reconstrução dos sonhos das crianças refugiadas. Sobre as fotos, há ilustrações, muitas delas produzidas pelas próprias crianças. Uma mistura de realidade e imaginação.

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