23 de janeiro de 2016 | 03h00
Hitler jamais tratou de outros temas de forma tão abrangente e insistente quanto esse ao longo de sua trajetória. Por essa razão, aqueles que se interessam em estudar suas ideias, para entender como Hitler chegou ao poder e como conseguiu convencer os alemães a participar do empreendimento genocida, não têm como evitar o Minha Luta - documento essencial que, felizmente, entra em domínio público e poderá ser livremente consultado.
A censura ao livro não se justificava em primeiro lugar porque seu conteúdo não difere em nada do que se havia escrito abundantemente desde o final do século 19 na Alemanha e em outras partes do mundo ocidental a propósito dos judeus. Um exemplo é o do ideólogo nacionalista alemão Paul de Lagarde (1827-1891), que escreveu que os judeus eram os veículos da decadência e da exploração, agiam como bacilos e pretendiam dominar o mundo: “Com bacilo não se negocia ou se educa; eles têm de ser eliminados o mais rápida e completamente possível” (Juden und Indogermanen, 1887).
Como esse, há inúmeros casos de pensadores europeus que antecederam a Hitler e que construíram o argumento que tornou aceitável a aniquilação real, e não metafórica, dos judeus. E nenhum dos textos produzidos por eles está sob censura. Minha Luta destaca-se entre essas obras não por suas ideias, já suficientemente conhecidas e disseminadas, e sim porque permite que se vislumbre a construção da estratégia de Hitler, cujo regime viria a se tornar o símbolo mais bem-acabado do totalitarismo. E lá está em detalhes - monótonos e repetitivos - a poderosa argumentação do ditador para conquistar os alemães, especialmente a oferta de sacrifício permanente e inegociável.
Hitler mistura sua biografia com a do país que viria a governar dez anos mais tarde como se ambos fossem uma única e indissociável entidade. Já no poder, ele resumiria essa percepção numa frase dirigida aos alemães: “Tudo o que vocês são, o são através de mim; tudo o que eu sou, sou somente através de vocês”. Assim, Hitler usou o Minha Luta como sua plataforma política. Depois de sua publicação e ampla difusão, ninguém poderia dizer que desconhecia seus propósitos.
A certa altura do livro, a respeito da derrota alemã na Primeira Guerra, Hitler escreveu: “Se, no começo e durante a guerra, tivéssemos submetido à prova de gases asfixiantes uns 12 ou 15 mil desses judeus, desses corruptores de povos, prova a que, nos campos de batalha, se submeteram centenas de milhares dos nossos melhores operários alemães de todas as categorias, não se teria visto o sacrifício de milhões de nossos compatriotas das linhas da frente”. Não se pode dizer, a rigor, que essa frase, como várias outras de teor semelhante no Minha Luta, prenuncia o genocídio dos judeus. Mas deixa claro que, para Hitler, era apenas uma questão de oportunidade.
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