Leia dois contos do livro 'Quarentenas: Textos de Uma Quarentena Criativa'

Editora Palavra Bordada liberou com exclusividade para os leitores do 'Estadão' os contos 'Dados Suspeitos' e 'Contravenções da Quarentena'

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Por Redação
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O livro Quarentenas: Textos de uma Quarentena Criativa, reúne 40 contos de 41 autores, produzidos durante o tempo de isolamento social causado pela pandemia do novo coronavírus. A editora Palavra Bordada liberou, com exclusividade para os leitores do Estadão, dois contos: Dados Suspeitos, escrito pelo militar Janderson Amaro com a filha Mariana Trindade, e Contravenções da Quarentena, da jornalista Anelise Zanoni.

As sócias Maribel, Camila e Carolina, da Palavra Bordada. Foto: Carlos Macedo

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A publicação está à venda pela Amazon, por R$ 19,90. Toda a renda é revertida para o  Centro de Educação Profissional São João Calábria. Localizada na zona sul da capital gaúcha, a instituição, atuante desde 1962, inclui cursos de capacitação para jovens e assistência a grupos em situação de vulnerabilidade social, com serviços ligados ao fortalecimento de vínculos familiares e comunitários.

Dados Supeitos

Por Mariana Trindade e Janderson Amaro 

Tensão... Júlia, Adriano e Arthur estavam sozinhos naquela casa. Trancados. Era uma situação que nenhum dos três havia vivenciado antes. Mesmo nervosos com tudo que estava acontecendo, sentaram-se à mesa da sala de jantar e começaram a procurar evidências. Júlia, com sua personalidade forte, pôs-se a investigar por conta própria. Deu pequenos e poucos passos por um corredor daquela casa tão boa de explorar. De fato, era uma casa muito grande.

Arthur, logo em seguida, a acompanhou. Embora não tivesse muitas deduções, sempre reconhecera a sagacidade de Júlia. Mesmo que ainda estivessem no início, segui-la parecia a melhor das opções. Estava chovendo forte do lado de fora, diferente dos tantos outros dias ensolarados que não puderam aproveitar. Adriano, num transe passageiro antes de iniciar sua busca, reparou nos pingos que deslizavam sobre o vidro com a esperança de que tudo aquilo que estava acontecendo no mundo terminasse logo. As rosas lá fora pareciam tristes; a violeta sobre a mesa, indiferente.

Adriano se moveu. Todos os outros já estavam à sua frente, era sua vez de escolher um caminho. Cozinha, por óbvio: facas para todos os lados, era bastante provável...

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Ao perceber que Arthur a seguia, Júlia, que sempre preferiu se isolar, apertou o passo, rumo ao escritório. Aparentemente, uma sala comum, mas Júlia, como já era de se esperar, revisou detalhe por detalhe. Vendo com atenção cada gaveta, as anotações deixadas na escrivaninha e a agenda posicionada na mesa ao lado da poltrona. Por fim, descobriu por puro acidente a possibilidade de se dirigir a um lugar, até então, desconhecido, através de uma passagem acionada ao mover um castiçal localizado na estante. Quando Arthur entrou no escritório e viu que Júlia misteriosamente não estava lá, correu assustado para a sala ao lado, era uma biblioteca ampla e bem iluminada.

Arthur era o mais sensível entre eles, sempre foi muito mimado por todos à sua volta. A sorte, porém, nunca o acompanhou, e seus aniversários sempre foram uma marca disso. Certa vez, numa tentativa de festa do pijama, houve uma falta de luz geral no bairro, por uma sobrecarga, tamanho foi o calor daquele dia. Todos foram completamente devorados por mosquitos, incluindo Júlia, que já sabe que acompanhá-lo é dar chance para o azar; em outro aniversário, foi picado por uma abelha no meio da festa, e sua alergia fez com que a comemoração acabasse no hospital; no outro ano, o piquenique para comemorar mais um ano de vida, foi arruinado por conta da chuva. Isso justifica o fato de chorar em todos os “Parabéns Pra Você” até hoje...

Era escuro e úmido. Eventualmente, ela tinha que se desviar de pequenas poças d’água sobre o chão de concreto; mas, por conta da falta de luz, não conseguiu evitar pisar em uma ou duas. Júlia atravessava, assim, o caminho que ligava duas partes opostas da casa. O acesso a outro cômodo — que logo descobriria se tratar da cozinha — não era tão longo quanto parecia. Apesar de ser uma casa de tamanho considerável, o percurso durou pouquíssimo tempo. Concentrada em procurar qualquer coisa fora do padrão, Júlia não conseguiu muito, apenas um cano solto cujo vazamento explicava as várias poças espalhadas por todo o caminho. Vazamento que só seria consertado, possivelmente, com uma chave inglesa que, por óbvio, ela não tinha.

— Como chegou aqui tão rápido se você seguiu para o outro lado da casa? Isso é impossível! — foi a primeira coisa que ouviu de Adriano, quando Júlia cruzou a pequena passagem que separava a cozinha do túnel digno de filme de suspense.

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— Eu tenho meus meios. Estou faminta — ela abre a geladeira para procurar algo para comer. — Será que tem alguma coisa aqui.

Adriano era observador. Olhava com atenção Júlia lavar caprichosamente as mãos, como as recomendações previam, e pegar ingredientes para fazer um sanduíche. Pão de forma, frango desfiado, alface, pepinos e mostarda. Bastante mostarda, que cai na roupa branca de Júlia imediatamente após sua primeira mordida. Não podia negar que ver aquilo embrulhava seu estômago, mas procurava não criticar. Adriano nunca foi do tipo de pessoa que julgava o que os outros faziam ou deixavam de fazer. Ele sempre foi mais quieto, na dele, “de boa”. Mesmo que não se destacasse muito, Adriano era muito bem visto por todos à sua volta. Sua vontade de ajudar toda pessoa que precisasse era constante e, com isso, conquistava qualquer um que convivia com ele...

A biblioteca mostrou-se um ambiente muito interessante para Arthur. Seus livros grandes e coloridos o fizeram até esquecer o susto que levou ao não encontrar Júlia no escritório. Ele decidiu continuar sua busca por ali. Um souvenir em formato de estrela localizado na parte mais alta da estante lhe chamou a atenção, e Arthur subiu em algumas prateleiras para alcançá-la, mas, ao fazer isso, seu pé escorregou de maneira que não conseguiu evitar o tombo e de quebra fez com que vários outros livros caíssem em seu rosto e fossem jogados ao chão. Antes que ele se irritasse pensando no trabalho que daria arrumar aquela bagunça, achou em um livro aberto caído uma carta suspeita, que fazia tudo se encaixar.

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Quando Adriano entra na próxima sala, dá de cara com um espaço grande que parecia caber bastante gente. Algumas poltronas estavam posicionadas viradas para um piano clássico que estava destacado na sala. Era um lugar agradável e confortável. Ao fundo, havia uma porta estreita de aspecto velhusco, mas ele não ousou abrir. Adriano sentou-se para organizar as ideias. Não tinha dados suficientes, mas ele precisava resolver aquilo logo. Depois de ter conversado pouco com Júlia na cozinha, ele percebeu como estava atrasado. Ela não deu muitas informações, mas Adriano a conhecia.

Antagônica aos outros dois, Júlia era determinada e dona de si. Com seu jeito independente, nada a impedia de fazer qualquer coisa que quisesse. Ela era persistente e corajosa, sempre saía à frente nessas ocasiões. Era essa determinação marcante na personalidade forte de Júlia que entregava seu jogo. Júlia tinha suas anotações, e Adriano sabia disso.

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Júlia olha por tudo. Embaixo do tapete azul marinho, dentro do aquário com peixinhos diversos e atrás dos móveis. Não encontra nada. Ela, então, observa com mais cautela o quadro de moldura preta que não tinha passado despercebido. Era uma imagem estranha: um militar apontando um revólver fazia com que ela se sentisse um alvo fácil. Algo um tanto inapropriado para uma sala de estar. Júlia acompanha o olhar do homem pendurado na parede, ele estava olhando para a lareira. Ela se aproxima e vê as cinzas de algo que foi queimado recentemente. Parecia estar envolto a uma corda, que também fora queimada e exalava um cheiro muito peculiar, que a faz tirar sua máscara do bolso.

Diante da falta de perspectiva, Adriano se levanta da poltrona, decide repetir a ação de Arthur de seguir a Júlia e, assim, vai ao seu encontro. Mal entrou na sala, Arthur o atropela e, com uma euforia jamais vista, declara a ambos:

— Eu já sei o que aconteceu! — gritou.

— Não acredito! — dizem os dois.

— Todos esses dias de quarentena em que jogamos jogos de tabuleiro, é a primeira vez que você ganha, e logo Detetive, o meu favorito — lamenta Júlia.

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Contraversões da quarentena

Por Anelise Zanoni

Às vésperas do feriado de 21 de abril, precisei de melatonina para dormir. E me deparei com um dilema: a quarentena com regras seguidas à risca é só para os fortes. Desde que o coronavírus fechou fronteiras e portas, lá em meados de março, o hormônio do sono não me visita com frequência. A rotina insossa de mais de um mês em casa, assistindo a noticiários pessimistas, preparando bolos, engordando e tentando trabalhar enquanto escuto meu filho gritando na sala, estava me deixando sem sono.

Com menos trabalho no campo profissional, muita louça pra lavar e a cabeça girando com novas ideias para "quando tudo voltar", estava me sentindo dentro de um filme em preto e branco de última categoria e com péssimos atores. Então, me entreguei à melatonina e ao sono!

A automedicação tem sido constante nessa quarentena que não tem data para terminar. Não sou um caso exclusivo de pessoa que usa o artifício. Tenho amigos que estão bebendo como se não houvesse amanhã (e será que teremos?), outros estão calibrando mais o antidepressivo e o ansiolítico e tem também aqueles que investem pesado em hambúrguer e batata frita.

Na verdade, são contravenções, e a quarentena está mostrando que precisamos de pequenas transgressões para suportar o momento. E foi numa dessas tomadas de decisão que eu dormi e acordei com uma outra linda ideia transgressora.

Ao acordar, após o efeito do medicamento, e ver o céu azul e o sol tinindo, decidi que era hora de aproveitar o feriado longe de casa. Deixei meu filho de três anos na casa de meus pais, que já estavam isolados há mais de um mês, e parti com o marido para um passeio por Bento Gonçalves (RS). Não fui sozinha, porque era bom ter um cúmplice para eu não me sentir tão culpada!

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Abastecidos de bolachas, água e chocolate, seguimos viagem. A escolha da cidade não foi por acaso: Bento é uma das poucas com regras flexíveis de isolamento. Ao longo do caminho, o túnel de árvores alaranjadas do outono na estrada asfaltada e o céu azul pareciam poesia. Por vezes, abri o vidro do carro e deixei o vento bater no rosto, me sentindo como aqueles cachorrinhos felizes num passeio matinal.

Dirigimos até o roteiro Caminhos de Pedra e, chegando lá, o que encontramos? Uma projeção daquilo que deve ser o paraíso, com árvores centenárias e grama verdinha.

Com comércio aberto parcialmente, muitos restaurantes e atrações estavam em funcionamento. Em uma delas, casais e famílias faziam piquenique entre coloridas flores à beira de um lago. Ao ver o sorriso de tanta gente e o tintilar de taças, tive certeza de que estava em outra dimensão.

Coronavírus? Nem sabia o que era! Preferi fechar os olhos e colocar os pés no pasto gelado. Em tempos de quarentena, tive certeza de que ali era meu jardim do Éden!

Poderia ser uma pintura antiga. Poderia ser um quadro de Renoir ou Monet. Mas era só um piquenique em Bento Gonçalves!

Sim, vocês podem me julgar por ter saído de casa num momento em que se pede isolamento social, muita máscara e álcool gel. Mas a contravenção foi libertadora! Fugir do isolamento foi como ultrapassar um portal mágico e negar a realidade vivida.

Faço meu mea-culpa, mas contravenções com segurança podem nos deixar menos culpados e mais felizes. Obviamente, temos de estar conscientes sobre nossas escolhas. Não estou dizendo que devemos sair para viajar e encontrar amigos todos os finais de semana. Seguir as regras ditadas pelos cientistas e pelo Ministério da Saúde é o ideal para reduzir os casos de coronavírus. Mas ter a oportunidade de sair de casa (e não ir apenas ao supermercado e à farmácia) é libertador. No momento em que vivemos, pequenas contravenções servem de recompensa.

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Valorizo muito quem até agora conseguiu ficar em casa totalmente isolado do mundo, vivendo apenas do ambiente digital e, por vezes, do delivery. Mas consigo entender bem quem precisou dar uma escapadinha nos últimos dias.

Confesso que desconfio dos meus pais, que, proibidos de sair de casa, sempre têm um produto novo na geladeira (e que não foi comprado por mim ou por meus irmãos!). Tenho certeza de que eles devem estar frequentando o mercado vizinho para comprar suco e cucas açucaradas.

É o ato libertador deles. Não julgo e sequer quis perguntar de onde saíram as novidades da geladeira, porque entendo.

O mais curioso de tudo é que o mundo mudou tanto que até mesmo nosso padrão de contravenção é outro! Transgredir em época de coronavírus é deixar o filho correr um pouco pelo condomínio, é sair cedo de casa para fazer uma caminhada, é exagerar nas taças de vinho e dar as mãos para os pais quando te pedem distanciamento.

Calcule o risco que você e seus familiares correm antes de sair de casa e se perdoe pelas pequenas e atuais contravenções. O mundo já está duro demais pra sermos tão rigorosos com nós mesmos.

Posso confirmar que minha vida ficou um pouquinho melhor depois da minha escapada à serra, que teve curta duração. Voltei mais leve, menos tensa e mais criativa. E naquela noite dormi tranquilamente. Sem melatonina e com sono completo!

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