Jorge Mautner faz 75 anos e lança novo livro com reunião de letras e poemas

Com 'Kaos Total', escritor, músico e filósofo reafirma a poética do ‘kaos’ que sempre inspirou

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

RIO - Aos 75 anos, Jorge Mautner está mais otimista do que nunca. “Meu otimismo só cresce. Tem minha filha, minha neta, vocês”, diz ele num café no Rio, aos dois organizadores do seu Kaos Total, João Paulo Reys e Maria Borba, e ao entrevistador, os três algumas décadas mais novos do que ele. “Isso tudo”, com ‘tudo’ sendo o ‘kaos’ que Mautner previu na metade dos anos 1950 e com o qual mantém íntima relação e militância até hoje, “vem agora, vocês como uma geração abençoada vão ver, o que demorava 10 anos para acontecer, leva 10 segundos”.

Chega às livrarias na próxima quarta-feira, 20, o Kaos Total, reunião de letras de Jorge Mautner (já gravadas e inéditas), poesias, fragmentos de prosa poética e textos-manifesto, como o da fundação do Partido do Kaos: “viver na fé é viver no escândalo”.

Brasileiro, cidadão do mundo. Crença no Brasil é maior do que nunca Foto: Marcos Arcoverde|Estadão

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O livro é resultado de mais de dois anos de trabalho de Reys, Maria e Natasha Felizi, que esvaziaram “um quarto” da casa de Mautner com textos, anotações e muitos trabalhos. “Desde livros inteiros até coisas lindas como, no caderno de telefone, no verso, a frase mais linda que você já leu na vida e você começa a chorar”, comenta Maria. “É surpreendente porque todo mundo acha que conhece, e de repente a gente descobre 80% do que ele fez e ninguém viu. Fico arrepiada de pensar.” E por que ninguém viu, Mautner? “Porque a militância é mais importante, e elas foram escritas no fragor do combate.” Neste domingo, Mautner completa 75 anos. Ele conversou com o Estado no Rio.

O Kaos com K ainda é uma ideia que você abraça ou ela já passou por uma revisão?

Ela é eterna. Eu fiz o Partido do Kaos, em 1956, ele vigorou até 1962, quando eu fui para o Comitê Central do Partido Comunista. Queria uma nova mitologia, que o Partido adotasse o Kaos como uma ideologia-mitologia. Mas aí eu fui exilado. Quando comecei a escrever, a gente sabia que o povo brasileiro não sabia ler. Então começamos a fazer música. Toda mensagem que eu tenho não bastava. Tinha que fazer um partido e células. Essa é minha história e isso está tudo aí (no livro), em poesias e coisas do tipo. Não existe pessoa mais obsessiva, psicótica e fanática (do que eu). Não sou um ser humano. Essa é minha visão desde o início dos tempos e a confirmo nesta despedida. É um itinerário.

Despedida?

Só vou parar quando morrer, e ainda voltarei como assombração. Mas 75 anos... Sou realista. Gostaria de poder viver 2 mil anos. Tenho planos, mas é tudo ligado entre si. (Um disco novo) está sendo preparado. Mesmo que não seja um disco, vamos colocar músicas na internet, tem muito material.

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Em mais de um texto, você diz que o mundo ou se ‘brasilifica’, ou vira nazista.

O ser humano são várias personalidades. Não podemos esquecer que somos chimpanzés muito avançados. Herdamos as funções deles, uma ferocidade imensa. Culturas indígenas, como a do Brasil, são uma exceção. O mundo não tem água nem respira sem o Brasil. Fora o nióbio. Esse celular, internet, foguete, satélite, nada funciona sem o nióbio. Nós temos 95% do nióbio do mundo. Se usássemos todos os rios navegáveis para transporte, teríamos uma redução de 85% do preço das mercadorias. Estrada de ferro, 70%. Isso tudo vem agora.

1963. ‘O Deus da Chuva e da Morte’ o faz levar o Prêmio Jabuti Foto: Acervo Estadão

Você luta contra discriminações (desde a religiosa até a sexual) desde sempre, mas há vários problemas desse tipo no Brasil.

O brasileiro é o povo mais instruído do mundo impedido de ler e escrever. Mas sabe de tudo isso. O povo sabe mais do que os intelectuais. Não estou inventando. Fora a juventude. Estamos na época da simultaneidade. O mal é profundo, o nazismo é profundo, continua por aí camuflado. Essa tentação existe. Mas isso vocês vão resolver, com cibernética e ecologia. O povo brasileiro continua com os batuques, os tambores do candomblé, com a generosidade de mutirão, de ajuda ao outro. O título do meu próximo livro é Não Há Abismo em que o Brasil Caiba. Eu fico irritado porque os intelectuais de fora sabem disso, e aqui isso foi trancado. Mas não dá mais para segurar.

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Foi trancado como?

Iiiiih, meu Deus do céu (risos). Foi trancado em nome da governabilidade. Por exemplo, em 1962, 1963, nós já sabíamos do golpe. Foi só 5% do exército. Um tempo depois, eu tinha uma coluna no Última Hora, passa um jipe na minha casa com um capitão. Minha mãe lamentou: ‘ah, mas vão prender meu filho’. E eles: ‘não, não, vamos proteger’. Eu passei então três meses em Barretos, com o exército, conversando disso tudo que estamos falando, com cavalheirismo. Eu tinha 23 anos. Mas eles diziam que eu tinha que elogiar, me comportar. Tirar os militares do poder foi um trabalho hediondo, mas é tudo entrelaçado.

A questão é que hoje, pelo menos aparentemente, sabemos mais o que acontece no País.

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Escrevi um artigo com o filósofo João Ricardo Moderno, para propor e acabar com esse negócio de raça. O ser humano, autodenominado, é um chimpanzé avançado. Vamos botar as coisas no lugar. E outra coisa, a democracia do Brasil é definitiva. Nas últimas eleições a presidente, tivemos três candidatas mulheres. Dilma Rousseff, a guerrilheira da democracia. Marina Silva, Jesus de Nazaré e Amazônia. Luciana Genro, que para um partido pequeno conseguiu uma votação muito grande. E o Aécio Neves, que é um patriota, idealista, que tem relações com Tancredo, e o PSDB é signatário da Segunda Internacional. Nós temos as leis mais humanistas, de proteção ao menor, etc. Não tem ameaça. O Brasil é um gigante. Aqui cabem dois bilhões de seres humanos sem um empurrar o outro. É uma loucura, quase absurdo.

Com Nelson Jacobina, um de seus maiores parceiros musicais, em 1979 Foto: Acervo Estadão

O Brasil hoje é mais careta do que na ditadura?

(risos) Mudou muito, claro. Todas conquistas, as leis, novidades, etnias, etc. A cultura brasileira preconizou tudo. O Domenico de Masi, em O Futuro Chegou, fala da esperança concreta de otimismo para a humanidade que é a cultura brasileira, o tropicalismo. Agora chegou a hora. Mas precisa consertar muitas coisas. O salário mínimo tem que subir três vezes, temos que ter dez vezes mais professores e triplicar o salário, médicos, polícias, cientistas… O Brasil só vai sair desse buraco artificial onde se encontra se não pensar mais em imediatismo egoísta, isso de querer derrubar o outro, interesses partidários. É o pior binário possível.

Insisto nisso porque isso parece ser o ‘Kaos total’.

Sim, há quatro definições para o Kaos. Kamaradas Anarquistas Organizados Socialmente. Kristo Ama Ondas Sonoras. Kolofé Axé Oxóssi Saravá. A quarta cada um escreve. (...) A liberdade criou quatro filhas: liberalismo, libertário (no sentido de revolução), libertinagem (importante também) e liberticida (que é perigoso). Mas vocês vão dar conta. Tudo é simultâneo, vocês têm simultaneidades inacreditáveis.

Manter o otimismo por tanto tempo é um dos aspectos mais intrigantes da sua obra, concorda?

Sim. Ele só cresce. Tem minha filha, minha neta, vocês. O que eu vou fazer?

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KAOS TOTAL

Autor: Jorge Mautner

Org.: João Paulo Reys e Maria Borba

Editora: Companhia das Letras (384 p., R$54,90)

Lançamento: Dia 26/1, às 19h, na Livraria Travessa – Ipanema, Rio, com leitura de poemas e sessão de autógrafos. Em São Paulo, ainda a confirmar.

Relembre alguns sucessos de Jorge Mautner

Quero Ser Locomotiva (1972)

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Manjar de Reis (com Caetano Veloso, 2011)

Maracatu Atômico (1974)