Isabel Allende: 'Devemos sacudir a sociedade onde vivemos e tentar estabelecer um novo normal'

Escritora fala sobre feminismo, o filme biográfico ‘Isabel: The Intimate Story of the Writer Isabel Allende’, que estreia em 12 de março na HBO Max, e sobre amor na pandemia

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Por Agências
Atualização:

NOVA YORK - Isabel Allende não é apenas a mais lida escritora viva de língua espanhola, é também uma feminista franca e declarada. Então, não é de surpreender que seu livro mais recente, The Soul of a Woman [A Alma de Uma Mulher], tenha chegado aos Estados Unidos durante o Mês da História da Mulher, poucos dias antes da estreia de uma minissérie sobre sua vida na HBO Max.

Isabel Allende não é apenas a mais lida escritora viva de língua espanhola, é também uma feminista franca e declarada. Foto: Lori Barra

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No seu primeiro livro de não-ficção em mais de uma década, a autora chilena revê sua relação com o feminismo desde a infância até o presente, lembrando as pessoas que a marcaram - de sua mãe, Panchita, e sua filha Paula, à agente literária Carmen Balcells e às escritoras Virginia Woolf e Margaret Atwood.

Ela também reflete sobre o movimento #MeToo, a recente agitação social no Chile e a pandemia global.

“O ano da pandemia paralisou tudo e muito do que as mulheres fizeram foi sair às ruas para se reunir e protestar”, disse Allende numa entrevista recente à Associated Press, via Zoom, de sua casa na Califórnia. “Mulheres sozinhas são muito vulneráveis, mulheres juntas são invencíveis. Não acho que as coisas tenham regredido ou parado. As coisas estão avançando”.

Os primeiros cinquenta anos de sua vida são dramatizados em Isabel: The Intimate Story of the Writer Isabel Allende [Isabel: A História Íntima da Escritora Isabel Allende], filme biográfico em três partes que estreia sexta-feira na HBO Max, estrelado pela atriz chilena Daniela Ramirez.

Produzida por Megamedia Chile e dirigida por Rodrigo Bazaes, a minissérie se encerra com a morte de sua filha, que morreu em 1992, aos 29 anos, em coma profundo devido a uma crise de porfiria (como Allende escreveu em suas memórias, Paula, de 1994).

“Me fez chorar porque começa com a Paula no hospital e acaba com a morte da Paula. Vimos com o meu filho (Nicolas) e tivemos de parar porque estávamos chorando muito com a primeira cena. Mas aí melhora, no sentido de que já não é tão pesado para nós”, disse, acrescentando que ficou extremamente satisfeita e impressionada com o resultado.

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Allende começa um novo livro a cada 8 de janeiro. No ano passado, o confinamento permitiu que ela terminasse não um, mas dois: The Soul of a Woman, lançamento da Ballantine Books e um próximo romance intitulado Violeta, que começa com a pandemia de 1918 (“que, na verdade, no Chile começou em 1920”, destaca ela) e termina com a atual pandemia. “É a vida de uma mulher naquela época”, diz ela.

Durante a entrevista, Allende relembrou seus primórdios como feminista e falou sobre sua experiência como uma “recém-casada” de 78 anos de idade em confinamento. Ela se casou com o terceiro marido, o advogado novaiorquino Roger Cukras, em julho de 2019.

As respostas foram editadas por questões de brevidade e clareza.

A senhora disse que se sentiu incomodada por injustiças contra as mulheres desde cedo e que era algo que via em sua própria família. Mas quando e como a senhora percebeu que era feminista?

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Querida, não existia tal palavra naquela época! Quando era menina no Chile, nos anos 1940, numa família conservadora, católica e patriarcal, minha mãe fora abandonada pelo marido e morávamos na casa do meu avô. Todos homens, meus tios e meu avô. E meu avô era o patriarca absoluto. Era um homem muito bom, eu o adorava, mas era a autoridade máxima, era um deus. 

O que meu avô dizia não era questionado. Cresci com a sensação de que minha mãe estava numa situação de injustiça, de desigualdade, de vulnerabilidade. Minha mãe morava na mesma casa e suponho que meu avô pagasse a escola e tudo mais, mas minha mãe nunca teve dinheiro, nunca teve liberdade. 

Por ser uma mulher separada naquela época, naquela sociedade, minha mãe era muito mal vista, tinha de cuidar muito de sua reputação, pela qual também era muito limitada. Quando percebi que essa raiva que sentia tinha um nome? Não foi, creio eu, antes da adolescência, porque não havia referências. E não conseguia perceber que realmente havia um movimento e que eu poderia pertencer a esse movimento até os 20 anos, pelo menos.

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E a senhora se sentiu libertada ou, de alguma forma, fortalecida? Como a senhora se lembra desse momento?

Eu me lembro de quando li A mulher Eunuco (1970), de Germaine Greer, que era um livro que tinha humor, inteligência e uma forma de dizer muito direta e óbvia. Estava sentindo todos esses sentimentos, mas não sabia como expressá-los, não sabia como articulá-los, até ler aquele livro.

'The Soul of a Woman' é seu primeiro livro de não ficção em mais de uma década. O que a levou a escrevê-lo agora?

Não foi ideia minha. Dei uma palestra na Cidade do México um tempo atrás e o discurso foi um fenômeno, viralizou. Os editores na Espanha pensaram em publicá-lo como um livrinho. Eu li e disse: “Essa coisa está totalmente desatualizada”, porque em pouco tempo vieram #MeToo, Black Lives Matter, os protestos de mulheres nas ruas... tinha acontecido muita coisa que não fora mencionada no discurso. Aí eu disse: “Não, isso é inútil”. 

E comecei a pensar na minha própria trajetória e em como tenho vivido o movimento, porque tem sido algo quase simultâneo, sabe? O movimento de libertação das mulheres é muito antigo, mas começou de fato com a pílula na década de 1960, quando, pela primeira vez, as mulheres conseguiram controlar sua fertilidade. Isso criou um espaço que não existia antes, um espaço que minha mãe não tinha, claro. Com quatro anos de casada, minha mãe já tinha três filhos. 

A senhora começou a escrever quando estávamos começando a nos fechar em casa por causa da pandemia. O que espera que aconteça agora com o movimento feminista?

O ano da pandemia paralisou tudo, mas as coisas continuam avançando. E o feminismo se juntou a outros movimentos que também estão nas ruas, como o Black Lives Matter, que é uma subversão contra o sistema, contra um sistema racista. Esse mesmo sistema, um sistema chauvinista, é o que dá ao gênero masculino a supremacia sobre as mulheres, sobre as outras raças, sobre as pessoas que não têm poder, sobre os filhos. Quando desafiamos o poder do sistema, vemos que temos tanto em comum que podemos fazer isso juntas. Chegamos a um momento em que devemos sacudir a sociedade onde vivemos e tentar estabelecer um novo normal diferente, mais sustentável, mais justo e melhor para nós, para todo mundo. 

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Como a pandemia está sendo para a senhora?

Boa, porque uma escritora precisa de tempo, silêncio e solidão, e a pandemia me deu tudo isso. Estou recém-casada e olha, a pandemia tem sido um teste de tornassol, porque é como uma longa lua de mel que nunca acaba (risos). Mas, nesta lua de mel, aprendemos muito como casal, como família, o que pode ser extrapolado para a humanidade: fomos forçados a viver num planeta frágil, num espaço limitado que tem de ser sustentável, temos de manter tudo limpo e em ordem, caso contrário, pereceremos. Precisamos de paciência, tolerância, compaixão, bondade. Precisamos de recursos suficientes para todos.

Como a senhora se sente em relação ao filme sobre sua vida? A senhora já viu?

Quando me falaram do projeto, nunca pensei que iriam fazer, por isso não dei muita atenção. Mas um dia eles me ligaram e a coisa estava praticamente pronta. A única coisa que pedi a eles é que respeitassem as outras pessoas que aparecem na série, porque, olha, eu tenho memórias escritas sobre minha própria vida, tenho sido meio tagarela, então não tenho o direito de reclamar de privacidade. Mas as pessoas ao meu redor que têm vida privada, vocês têm que ser respeitosos com elas; essas histórias não me pertencem. Mas eles (os produtores) fizeram um bom trabalho, porque respeitaram o meu ex-marido, os meus filhos. Gostei muito do resultado.

O que a senhora achou da atriz principal? A senhora se sentiu bem representada?

Daniela Ramirez desempenha um papel que acho muito difícil, que é imitar outra pessoa, tentar ser outra pessoa. E, além disso, não somos parecidas: ela é uma mulher muito jovem e bonita. Mas, olha, eles até fizeram os penteados, os vestidos. Tenho um colar com moedas de prata e cada uma das moedas é diferente, uma joia feita especialmente para mim. Eles fizeram um colar idêntico! E o mesmo aconteceu com muitos detalhes, como a casa, as crianças... É realmente muito emocionante.

Tradução de Renato Prelorentzou

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