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Ian McEwan faz 70 anos e é celebrado com dois lançamentos

Um dos principais nomes da literatura contemporânea, o inglês Ian McEwan, autor da obra-prima 'Reparação', apresenta 'Meu Livro Violeta', com um conto inédito e um libreto, e relança 'A Criança no Tempo'

Por André de Leones
Atualização:

Em linhas gerais, os escritores costumam lidar com um mesmo lote de obsessões. Quando revisitamos as obras de um autor, é relativamente fácil perceber os elementos que orientam a sua mão e, quando bem trabalhados, desconcertam o olhar dos leitores. Não se trata apenas de ‘estilo’, mas de algo mais difuso que, girando em torno de um centro temático, está além do ritmo das frases, das estruturações habituais e mesmo das manias e tiques. Assim, institui-se um nível mais profundo de identificação do autor consigo mesmo e, depois, com seus leitores. Isso é evidente quando nos debruçamos sobre a produção de Ian McEwan, coisa que o relançamento de A Criança no Tempo e a chegada de Meu Livro Violeta ajudam a mapear.

O escritor britânico Ian McEwan, que faz 70 anos, participou da Flip em 2012 Foto: Marcos de Paula/Estadão

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McEwan passou por algumas ‘fases’ no decorrer da carreira. É sempre uma questão de ênfase ou, melhor dizendo, de enfatizar determinados elementos ou lhes dar novas roupagens, aprofundá-los, virá-los pelo avesso, repensá-los. No começo era o ‘Ian MacAbro’ das narrativas sombrias e violentas, como os contos de Primeiro Amor, Último Sacramento e Entre Lençóis e os romances O Jardim de Cimento e Ao Deus-Dará. Já neste século, temos o autor maduro (e antenado com o zeitgeist) de Sábado e Solar.

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Entre uma ‘fase’ e outra, há um período de transição e consolidação iniciado justamente com A Criança no Tempo, em 1987. A partir daí, McEwan refina aqueles elementos que já se faziam presentes nos primeiros escritos, mas trabalhando a violência de formas mais sutis e abrindo espaço para uma gama maior de interesses e especulações (vide o uso da música em Amsterdam). O refinamento culmina na obra-prima Reparação, romance que amplia todas as dissonâncias (familiares, sociais, históricas e, acima de tudo, da própria tessitura ficcional) daquele seu lote de obsessões.

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Chegamos, então, aos lançamentos que celebram os 70 anos de McEwan neste 21 de junho. Terceiro romance do autor, A Criança no Tempo não era inédito no Brasil: há duas décadas, a mesma Rocco que publicou seus contos reunidos, entre outras pérolas, colocou no mercado uma boa tradução de Geni Hirata. Para o relançamento, a Companhia das Letras recorreu a Jorio Dauster. Meu Livro Violeta, vertido pelo mesmo tradutor, traz o conto homônimo (publicado pela primeira vez na revista New Yorker) e o libreto para a ópera Por Você, de Michael Berkeley.

Premiado com o Whitbread (hoje Costa Book) Award, A Criança no Tempo é um tortuoso palmilhar pelo luto. Seu protagonista, o autor de livros infantis e “esfacelador de pequenos mundos” Stephen, teve a filha de 3 anos raptada na fila do supermercado. A ocorrência o afasta da esposa, a violinista Julie, e instaura uma nova relação dele com o mundo ao redor (o hábito doloroso de estar sempre à procura da filha, e às vezes de enxergá-la ou confundi-la com outras crianças) e o tempo. Este, por mais que proíba “de forma monomaníaca as segundas oportunidades”, será um aliado nem sempre amistoso, mas afinal confiável em suas tentativas não de resgatar a filha, perdida desde o começo, mas a si mesmo e Julie.

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Nisso, tão importante quanto a relação dele com o melhor amigo, Charles, o qual abandona uma carreira política promissora para se esconder no campo e embarcar em uma quimérica regressão à infância, é a “viagem no tempo” que Stephen empreende, ingressando de forma alucinatória em um momento decisivo das vidas de seus pais e, por decorrência, da sua própria. Naquele instante anterior está a chave para que Stephen deixe de ser o “pai de uma criança invisível” e recupere o “desejo de pertencer” que a perda anulara.

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Meu Livro Violeta é a história de um roubo intelectual. “Você não vai acreditar”, diz o narrador, “mas eu não tinha nenhum plano. Só queria ver.” Há dois amigos de longa data, ambos artistas (o que nos remete a Amsterdam) – no caso, escritores. Um deles é extremamente bem-sucedido; o outro, longe disso. Seria demais revelar exatamente o que e, sobretudo, como é roubado, mas não custa ressaltar que a traição é, mais do que intelectual, anímica.

Por fim, o libreto Por Você segue explorando esse tema. Algumas traições são mais imediatas (a esposa do compositor e o médico); outras, intrincadas e cruéis, como a motivação da empregada, disposta a tudo não para se entregar ao amado ou libertá-lo, mas, antes, tornar “seu cativeiro um lugar feliz”. Esse tipo de ironia trevosa é puro Ian McEwan.

MEU LIVRO VIOLETA Autor: Ian McEwan Tradução: Jorio Dauster Editora: Companhia das Letras (128 págs.; R$ 44,90)

A CRIANÇA NO TEMPO Autor: Ian McEwan Tradução: Jorio Dauster Editora: Companhia das Letras (288 págs.; R$ 59,90)

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ANDRÉ DE LEONES É AUTOR DO ROMANCE 'ABAIXO DO PARAÍSO' (ROCCO), ENTRE OUTROS

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