Guimarães Rosa é celebrado 50 anos depois de sua morte

Uma reedição de sua ficção completa, eventos, um filme e até uma praça e uma estátua em Belo Horizonte relembram a data

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Por Guilherme Sobota
Atualização:
Correção:

João Guimarães Rosa morreu há 50 anos neste dia 19 – apenas três dias depois de assumir sua vaga na Academia Brasileira de Letras – e eventos, edições, filme e uma estátua em Belo Horizonte são algumas homenagens que o escritor mineiro recebe nesta efeméride. A Nova Fronteira, editora de sua obra há 30 anos, lança um box com a ficção completa, dois volumes em 2.064 páginas, disponível apenas na Amazon por R$189,90, e em pré-venda até 17 de dezembro.

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+ Silviano Santiago: 'Grande Sertão: Veredas' é uma escrita comprometida com a realidade

A GloboNews exibe neste sábado, 18, às 20h30, Sertanias, documentário da sobrinha do escritor, Juliana Dametto Guimarães Rosa, e Alexandre Roldão. A produção mostra o pedaço do Brasil que o autor recriou em Grande Sertão: Veredas

+ TV Estadão: Novas Veredas: Guimarães explica 'Grande sertão'

No domingo, a Praça Guimarães Rosa, no bairro Cidade Nova, em Belo Horizonte, passa por uma reinauguração e ganha uma estátua do autor. Em São Paulo, também no domingo, a partir das 11h, a Livraria da Vila da Alameda Lorena recebe artistas, entre eles Lima Duarte, para leituras de Grande Sertão.

Ainda no domingo, às 16h, a escritora Noemi Jaffe dá uma palestra sobre o autor no CCBB (R. Álvares Penteado, 112). Na segunda, 20, a diretora Bia Lessa ministra um workshop apresentando a criação do espetáculo/instalação Grande Sertão: Veredas, que após uma temporada no Sesc Consolação será encenado no Rio, em 2018.

A minissérie Grande Sertão: Veredas, de 1985, com direção de Walter Avancini – aquela que Bruna Lombardi é Diadorim – reestreia no dia 18 de dezembro no VIVA e fica disponível no Globosat Play.

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Foto no Museu Guimarães Rosa, em Cordisburgo, Minas Gerais, de2006 Foto: Sergio Castro/Estadão

Rosa morreu em 1967, e ainda estamos aguardando sua biografia “definitiva”. A filha e principal controladora do espólio, Vilma Guimarães Rosa, lançou Relembramentos: João Guimarães Rosa, Meu Pai nos anos 1980 com boa recepção crítica, e há um imbróglio judicial em andamento com Alaor Barbosa, autor de Sinfonia de Minas Gerais: A Vida e a Literatura de João Guimarães Rosa, livro que foi recolhido em 2008, liberado em 2014 mas não voltou às livrarias. A obra literária de Guimarães Rosa, porém, vem sendo bem tratada pela Nova Fronteira e continua ressoando com força no meio literário e acadêmico e o público leitor.

“A obra de Guimarães Rosa é única porque capaz de recriar pelo caminho da literatura, uma interpretação original do Brasil”, diz a professora da UFMG e especialista em Rosa, Heloisa Starling. “Mas, sobretudo, ele inventa uma linguagem capaz de fazer uma mediação entre duas culturas: a tradição letrada brasileira e a outra, a tradição de quem mora nos fundos da nossa República.”

O escritor Milton Hatoum concorda. “Grande Sertão, inovador em todos os sentidos, realiza o projeto ambicioso do romance total, pois é extremamente complexo em sua profunda dimensão histórica, metafísica, sexual, política e mito-poética. É um romance que não para de desafiar a crítica e, como Macunaíma, aponta para o nosso impasse”, diz. É um sentimento parecido ao da professora de literatura brasileira da USP, Yudith Rosenbaum. “A obra de Guimarães Rosa é uma abertura de caminhos que levam à renovação do nosso idioma e à descoberta de um Brasil desconhecido até então”, diz.

Leia abaixo os depoimentos completos sobre a obra de Guimarães Rosa, solicitados pelo Estado (fizemos duas perguntas iguais para algumas pessoas: O que a obra Guimarães Rosa significa para você e para a literatura brasileira contemporânea? e Qual é o caminho que você indica para leitores entrarem na obra de Guimarães Rosa?).

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Heloisa Starling, professora do Departamento de História da UFMG:

"Difícil falar de Guimarães Rosa. Primeiro a gente vê a gravata-borboleta pousada entre as pontas do colarinho branco. Mais acima, dominando o nariz, os óculos de aro de tartaruga. No meio das lentes os olhos pequenos, meio azulados, vivíssimos. E tudo isso encimando uma figura alta, corpulenta, com jeito de pregador religioso. A pessoa há de se perguntar: como é que um sujeito assim, com esse ar bem posto na vida e essa pinta de boi risonho, escreveu a história de Diadorim?

Em uma crônica escrita em 1962 para saudar a publicação de Primeiras Estórias, Carlos Drummond de Andrade avisou: “E mais uma vez não facilitem com o Rosa; ele diz sempre outra coisa além do que está dizendo”. Drummond tem razão. A obra de Guimarães Rosa é única porque capaz de recriar pelo caminho da literatura, uma interpretação original do Brasil – ela fornece aos brasileiros um modo de sentir e pensar o país e nele intervir. Traz uma nova maneira de abordar a história e a vida política do Brasil, além de retomar uma perspectiva de interpretação do país que dê conta de suas condições particulares, em diálogo com Euclides da Cunha, Raymundo Faoro e Sérgio Buarque de Holanda. Mas, sobretudo, inventa uma linguagem capaz de fazer uma mediação entre duas culturas: a tradição letrada brasileira e a outra, a tradição de quem mora nos fundos da nossa República, só sobressai pela falta, pela privação e só costuma ser nomeada pela negativa: os excluídos, os párias, os catrumanos que não são apenas os sertanejos do norte de Minas Gerais, mas representam os moradores do Brasil, um país, Rosa dizia, de “mil-e-tantas-misérias”.

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Tom Jobim entrou pela porta da música que descobriu espalhada por toda parte no Sertão de Guimarães Rosa: “Tentava ler Grande Sertão... e não consegui, porque era denso, pesado. Depois, comecei a ler em voz alta e aquilo virou uma sopa no mel. Aquilo virou a minha casa!”. Já o escritor Mia Couto entrou pela poesia: “E foi poesia o que me deu o prosador João Guimarães Rosa. Quando o li pela primeira vez experimentei uma sensação que já tinha sentido quando escutava os contadores de histórias da infância. Perante o texto, eu não lia, simplesmente: eu ouvia vozes da infância”. O embaixador Alberto da Costa e Silva, poeta e historiador, também entrou pela poesia: “Li Grande sertão: veredas apaixonadamente, mas com paixão ainda maior voltei, por causa dele, a Corpo de baile, e senti que era com os poemas dos dois volumes de capa vermelha que se casava a minha alma. Fui Miguilim lá no bem dentro. E muitas vezes emocionei-me com Lão-Dalalão (Dão Lalalão), uma das mais belas histórias de amor que chegou até mim, e procurei decifrar os vários segredos dessa obra-prima que é Cara de Bronze. Cada um de nós acha sua porta. A melhor é o Sertão. Começa-se pela beleza do sertão de Guimarães Rosa, tão diferente do sertão áspero, com suas paisagens secas descritas por Euclides da Cunha e João Cabral de Melo Neto. Mas o Sertão é também o ponto de articulação entre imaginação literária de Rosa e sua perspectiva original de interpretação do Brasil. E, Sertão, em Rosa, é ainda o que não se vê: o fundo mítico do Brasil projetado sobre uma sociedade primitiva que vive longe do espaço urbano e o que é aparentemente seu avesso, uma cidade brasileira qualquer e todas as outras cidades do país, a que já é apenas degradação de seus lugares públicos, a cidade concebida para expressar a modernização e a periferia miserável que fixou seu perfil."

Yudith Rosenbaum, professora de literatura brasileira da USP:

"Para a literatura brasileira, a obra de Guimarães Rosa é uma abertura de caminhos que levam à renovação do nosso idioma e à descoberta de um Brasil desconhecido até então. De Sagarana à Tutameia, passando por Grande sertão: Veredas, para ficar só na obra publicada em vida, o sertão dos Campos Gerais ganha uma significação mítica e universal – o sertão é o mundo, como já se disse -, ao lado de suas marcas regionais e particulares. Para mim, ler Guimarães Rosa é me reconhecer na humanidade insólita de seus personagens, aprender modos de vida rústicos e populares pouco sabidos pela cultura urbana, mas com os quais todos podem se identificar. A invenção de uma língua que mescla arcaísmos e modernidade, prosa e poesia, saga e regionalismo, como nunca antes na nossa literatura, me leva como leitora a vivenciar a travessia do “homem humano”(palavras de Rosa) em novos paradigmas. Com Riobaldo e outros personagens, distantes e próximos do meu mundo cotidiano, percebo que a vida é desafio de decifração, enigma constante entre destino e ação consciente, desejo e acaso, razão e encantamento.

Seja qual for o livro que o leitor escolha para entrar na obra, sugiro que se deixe levar pela linguagem inusitada, que tope o desafio de um texto que bebe na oralidade e cria vocábulos novos, bem como resgata um português antigo e esquecido. Isso gera um estranhamentosaudável, que faz o leitor parar e refletir sobre as palavras. Para se iniciar na obra, proponho uma sequência de 3 livros como etapas de aprendizagem da escrita rosiana, lendo sem pressa e contemplando a profundidade das narrativas, para depois aventurar-se nas demais obras. Eu começaria por Sagarana, que introduz o leitor a uma nova dicção, com enredos totalmente ambientados no sertão dos Gerais, com seus tipos humanos que sintetizam a história da formação do Brasil (jagunços, mandões, fazendeiros, vaqueiros, boiadeiros, sitiantes etc); depois, sugiro Grande sertão: veredas (imperdível), de leitura mais exigente pelo jorro de uma fala/escrita que leva tempo e atenção para ser compreendida e, por fim, Primeiras Estórias, cujo mote é o Brasil às portas da modernização dos anos 50 e 60 – a construção de Brasília abre e fecha o livro – e explora enredos mais fragmentados e surpreendentes. Acredito que depois desse caminho – que já e quase toda obra - , o leitor empenhado se abre ao infinito das demais estórias de Rosa, como as novelas mais longas de Corpo de Baile e o minimalismo mais hermético de Tutameia."

Sérgio Sant'Anna, escritor, autor de Anjo Noturno:

"A obra de Guimarães Rosa significa para mim, como leitor, uma constatação de que é o maior escritor da literatura brasileira. Seu Grande Sertão, Veredas é obra de gênio não apenas por sua inventividade de linguagem, mas também porque foi essa inventividade mesma que lhe propiciou um mergulho profundo no ser do homem, brasileiro ou não. No entanto, penso que a obra de Rosa começa e termina em si mesma, não deixa herdeiros nem abre espaço para influenciar outros escritores. Seguir o caminho trilhado por Rosa seria um exercício inútil, para não dizer impossível. Aos leitores eu aconselharia que começassem pelos livros de contos, Sagarana, por exemplo, para se tornarem mais aptos para o grande mergulho no grande sertão, metáfora para a própria vida."

Milton Hatoum, escritor, autor de A Noite da Espera:

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"Li a obra de Rosa nos anos 70, quando estudava arquitetura na USP. Foi uma descoberta de um gênio verbal, cuja linguagem é inimitável e , até certo ponto, intraduzível. Grande sertão: veredas é o ponto culminante da literatura de vanguarda. Esse livro, inovador em todos os sentidos, realiza o projeto ambicioso do romance total, pois é extremamente complexo em sua profunda dimensão histórica, metafísica, sexual, política e mito-poética. Nessa narrativa, grandes personagens lidam com conflitos existenciais, morais e físicos. Nas sucessivas guerras entre bandos de jagunços, a luta pelo poder e por territórios traduz também um embate entre um Brasil arcaico, atrasado e um Brasil que se pretende mais moderno. É um romance que não para de desafiar a crítica e, como Macunaíma, aponta para o nosso impasse.

Posso falar da minha experiência de leitor. Antes de encarar o Grande sertão, li Primeiras estórias e as novelas de Sagarana. Esse percurso de leitura foi uma opção pessoal. Quem gosta de literatura pode começar pelo Grande sertão. Se for um leitor paciente e passar da página 40, nunca mais deixará de reler um dos maiores, talvez o maior romance de língua portuguesa."

Vilma Guimarães Rosa não pôde atender a reportagem nos últimos dias, mas enviou um depoimento acerca dos 50 anos do escritor:

"Esta semana está sendo muito emocionante para mim com tantas homenagens ao meu pai e a mim pelos 50 anos de lançamento do meu primeiro livro, Acontecências. Naquela época, os jornais, os amigos e a família chegaram a batizar a semana de Semana dos Guimarães Rosa, por causa do meu lançamento e da cerimônia de posse do meu pai na Academia Brasileira de Letras, que ele adiou por 4 anos. Infelizmente na noite de domingo da mesma semana, meu pai morreu fulminado.

Eu tenho muito orgulho dele. Escrevi um livro a seu respeito chamado Relembramentos: João Guimarães Rosa, meu pai em que falo do médico dedicado e do diplomata brilhante que ele foi e também do ícone da literatura mundial que ele é. Se não tivesse morrido tão cedo, meu pai teria ganhado o prêmio Nobel daquele ano. 

Desses três o lado menos conhecido dele é o de médico. E é como médico que ele se mostra mais emotivo e humano. Ele foi trabalhar numa cidade do interior de Minas por idealismo. Entre tantas possibilidades, escolheu uma cidade que não tinha médicos. Foi lá que eu nasci, pelas mãos do meu pai, que sempre me dizia que o meu primeiro banho foi dado por suas lágrimas de felicidade.

Estou seguindo para Belo Horizonte para inaugurar uma praça com seu nome no domingo de manhã, uma homenagem que me enche de alegria."

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