
14 de setembro de 2019 | 08h00
De forte pegada satírica, o trabalho de Gary Shteyngart (escritor nascido em 1972 na União Soviética, que emigrou aos 7 anos para Nova York) começou a ganhar a atenção da mídia americana com Absurdistão (2006), romance em que um filho de imigrantes luta para ganhar de volta um amor perdido no South Bronx. São outros três livros nas prateleiras: O Pícaro Russo (2002), Uma História de Amor Real e Supertriste (2010) e Fracassinho (2014).
Além, agora, de Lake Success (editora Todavia), seu elogiadíssimo romance mais recente, em que o escritor põe como protagonista, pela primeira vez, um personagem americano. Barry Cohen é um bilionário administrador de fundos de ações que decide desbravar os Estados Unidos com os ônibus da Greyhound após uma rusga na família. Ele e sua mulher, Seema, lidam (quase sempre mal) com o filho no espectro autista, e o livro se passa em 2016, às vésperas da eleição de Donald Trump. O romance se torna então uma profunda reflexão sobre a “América” nos tempos atuais, com o toque de humor inconfundível de Shteyngart. Por e-mail, ele respondeu às seguintes questões.
Muito. Minha habilidade de ler e escrever foi severamente danificada pelo iPhone. É difícil focar, difícil pensar demoradamente, difícil aproveitar a beleza da linguagem que costumava ser a coisa mais importante do mundo para mim. Eu fui ao centro do Círculo Ártico alguns anos atrás, longe de qualquer sinal, e foi o tempo mais bonito da minha vida recente. Li um livro de cabo a rabo em poucos dias, do jeito que livros foram feitos para serem lidos.
É muito difícil testemunhar um dos grandes desastres da história americana, da história do mundo, e não escrever sobre ele. Ao mesmo tempo, o romancista está mais preocupado com coisas básicas: família, amor, relacionamentos, desejo. É preciso equilibrar a vida em miniatura com a tela horrível dos eventos mundiais contemporâneos. Uma coisa que líderes como Trump e Bolsanaro (sic) fazem é dominar o discurso e pensamento diário de um jeito bastante autoritário. É como ter um retrato do Grande Líder pendurado dentro da sua cabeça. Como voltamos a apreciar a vida, a arte e a beleza onde tudo ao nosso redor é dominado pela feiura, pelo egoísmo e pela ganância?
Sim, escritoras são muito melhores ao escrever sobre homens do que o contrário. Acho que é porque homens, pelo menos da minha geração, foram criados para pensar que o que eles tinham para dizer era muito mais importante do que o que as mulheres tinham para dizer. O resultado é essa “barreira invisível de falta de noção”, enraizada na falta de respeito e empatia.
Sim, eu passei quatro anos saindo com donos de fundos multimercado, muitos valendo centenas de milhões ou mesmo bilhões. Eles eram bons de tirar dinheiro dos seus investidores, mas não em outras coisas, incluindo vida familiar. Porque eles tinham feito algumas boas jogadas no mercado, achavam que eram gênios, hábeis em coisas como políticas públicas e filantropia. Barry sonha em começar o Urban Watch Fund, uma fundação de caridade que distribui Rolex para crianças pobres na cracolândia. A ideia soa realmente estúpida, mas é exatamente o tipo de iniciativa boa e egoísta que eu frequentemente ouvia das pessoas no mercado financeiro.
A Associação Nacional de Rifles (NRA) é muito forte nos Estados Unidos e praticamente controla o partido Republicano. Vai ser muito difícil controlar a violência com armas de fogo no nosso país. Há quase 70 páginas de Lake Success que servem como uma longa carta de amor para a cidade de El Paso. Eu fiquei de coração partido pelo que aconteceu, a falta de sentido e o racismo daquilo.
Parece que sim. Encontrei donos de fundos multimercado que eram profundamente homofóbicos até um de seus filhos se assumir gay. Então, de repente, eles eram favoráveis ao casamento gay. Seres humanos são bastante previsíveis.
Claro! Estive no Brasil algumas vezes. Que país encantador. Salvador, eu acho, foi minha cidade preferida. E a capivara é o meu animal preferido. Eu pensei em comprar um lugar e criar algumas capis, mas é muito trabalho.
“Tentou visualizar o ódio das pessoas que votaram em Trump por ela e por pessoas como ela, todos aqueles rostos pardos e amarelos no Instagram, posando nos cafés mais descolados das cidades mais quentes, no melhor momento possível, vidas que no passado eram dedicadas apenas ao trabalho braçal agora sendo consumidas em meio à diversão e ao conforto. Mas era mesmo culpa deles se estavam ficando mais ricos enquanto os trumpistas brancos estavam ficando mais pobres? Ela se lembrou de uma história que Barry contou sobre o Greyhound, os supremacistas brancos falando mal dos banqueiros judeus do mundo. Aquilo era terrível, com certeza, mas todas as pessoas que ela conhecia, judeus, indianos, coreanos, todo mundo estava recebendo sua parte, ninguém mais do que seu ex-marido, enquanto a maioria das pessoas que os detestava não tinha nada. Então, quem estava certo?”
Autor: Gary Shteyngart
Tradutor: André Czarnobai
Editora: Todavia (448 págs., R$ 79,90, R$ 39,90 o digital)
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