Flip 2019: Origens africanas e relação com a música embalam debate

Embora a música seja o ponto de convergência que tenha motivado o encontro entre Kalaf Epalanga e Gael Faye, outro fator une os dois artistas: política, na chave da imigração

PUBLICIDADE

Por Guilherme Sobota
Atualização:

ENVIADO ESPECIAL / PARATY - Kalaf Epalanga nasceu em Angola em 1978 e é fundador do Buraka Som Sistema, banda expoente do kuduro, ritmo angolano. Gael Faye nasceu no Burundi, em 1982, e fez carreira na música com uma mistura particular de rap, soul e outros ritmos. Ambos escreveram também livros de sucesso internacional: Faye chegou a levar o Goncourt des Lycéens, espécie de irmão mais novo do principal prêmio literário francês. Por esse motivo, a dupla dividiu uma das mesas da 17.ª Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) nesta quinta-feira, 11.

PUBLICIDADE

Embora a música seja o ponto de convergência que tenha motivado o encontro, outro fator une os dois artistas: política, na chave da imigração. 

Também os Brancos Sabem Dançar (editora Todavia) nasceu de uma conversa de Epalanga com o escritor angolano José Eduardo Agualusa, que lhe sugeriu escrever uma história do kuduro, ritmo originário de Angola a partir de uma mistura de house, techno, zouk e ritmos locais. “Mas o fio condutor do livro é a imigração”, explicou o escritor e músico - entre os personagens, está um detetive norueguês que se apaixona por uma libanesa, e uma mulher europeia filha de pais africanos.

Gael Faye, Kalaf Epalanga e Marina Person na Flip 2019 Foto: Walter Craveiro/Flip

Essa alteridade é um dos temas que o artista explora em seu trabalho com mais afinco. “A kizomba era o santuário onde africanos na Europa se encontravam, e foi onde o kuduro floresceu. Porque as discotecas nos transformavam em indivíduos, com dignidade própria, e não apenas em quem limpava ou construía casas dos brancos. Para mim era importante trazer esse lugar para o meio do livro, esses espaços praticamente de salvação.” O kuduro é, na opinião dele, uma forma de afirmação na medida em que seus conterrâneos percebem que faz mais sentido fazer a música que eles gostam conversando com seus próprios elementos. “É um roubo do nosso próprio catálogo”, concluiu.

Já Faye, que também viveu uma situação de exílio ao ter de fugir dos confrontos no Burundi e em Ruanda, aos 13 anos de idade. Já vivendo na França e com uma trajetória na música, resolveu escrever uma canção sobre sua vida antes da guerra. Mas o selo musical ao que ele era contratado não gostou e ele então decidiu passar para a literatura. “Quis contar como a guerra entra no cotidiano de uma criança, porque ela nunca é uma explosão repentina, é mais como um quadro impressionista, e esses toques sutis é o que o meu personagem observa, nos gestos das pessoas.”

A criança de Meu Pequeno País (Rádio Londres) é franco-ruandesa como ele, mas o livro é uma ficção, explica. “Se escolhi esse personagem, foi porque o mestiço muitas vezes não existe de fato na literatura, e falo do mestiço como alguém que vive entre vários mundos ao mesmo tempo. Nesse caso, com esse personagem, eu poderia questionar toda a sociedade, porque ele tem acesso ao mundo do branco, e eu sempre vivi nessa fronteira, com um olhar de contraponto, não apenas como europeu, e não só como africano”, comentou.

A mesa teve um pequeno ruído entre a mediadora, a diretora Marina Person, e o convidado angolano. Ao explicar que a mesa seria realizada em português e francês, ela mencionou que ele falaria português de Portugal, mas Epalanga gentilmente a corrigiu. "Eu sou angolano, cara", brincou, com sotaque brasileiro.

Publicidade

Em outro momento do debate, Epalanga comentou a obra de Caetano Veloso após uma pergunta da plateia. “Caetano tem tantas encarnações. É como Adriana Calcanhotto falou, a gente tem de comer Caetano, porque enquanto ele estiver vivo, ninguém consegue fazer mais nada (risos). Ele é uma estrela guia, alguém que é o artista perfeito. Todo ele vive arte, em sua expressão máxima. É um verbo.”

Faye comentou que a força da expressão da arte brasileira também chegou a ele no “pequeno Burundi”. “Fazendo mixtapes, nós dançávamos lambada”, contou.

Para terminar numa nota otimista, Epalanga ofereceu um conselho: “Não pensem o que vocês estão vivendo atualmente no Brasil como o fim da picada. Talvez isso vai obrigá-los a se reencontrarem. Saiam daqui, viagem, comecem pelos livros, mas depois usem essa coisa maravilhosa que se chama passaporte”.

Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.