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Falsa impressão

Federico Andahazi discute sexo e poder ao mesmo tempo em que desmistifica Gutenberg

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

Federico Andahazi é o primeiro a observar que O Livro dos Prazeres Proibidos é sua publicação mais intensa. O motivo está em surpreender o leitor que, crente de desfrutar uma obra de ficção, é logo informado de que boa parte das ações aconteceu e pode ser comprovada por documentos verdadeiros. Como de hábito, o escritor argentino gosta de discutir relações de poder. E, se sua narrativa se concentra em uma turbulenta cidade alemã do século 15, Andahazi, na verdade, oferece um olhar crítico sobre a atualidade. Para ele, não se pode compreender a história de um país se não à luz de sua sexualidade. A recíproca é verdadeira: não se entende a forma que cada um exerce sua sexualidade se se desconhece a história política e social de uma nação.Daí o tom deliberadamente picante de sua narrativa, uma lascívia cuja função é dupla: entreter e fomentar dúvidas e comparações. Sobre o assunto, o escritor, que participou no início do mês da Feira do Livro de Porto Alegre, onde promoveu o lançamento de seu livro no Brasil, respondeu, por e-mail, as seguintes questões.O Livro dos Prazeres Proibidos aborda o problema da censura no exato momento em que o tema se tornou atual na Argentina. Conhecendo o tom político da sua obra, não creio que foi coincidência, não? O passado é sempre um estratagema para falar do presente. Toda história, mesmo que ambientada na Idade Média, é uma parábola da atualidade. Um autor nunca pode fugir da sua época, mesmo que se proponha a isso. Na verdade, o romance na essência fala da permanente tensão entre a liberdade de pensamento e o poder. Os políticos argentinos costumam usar uma frase curiosa, que vêm repetindo cada vez com mais frequência - para manifestar sua lealdade à presidente, afirmam com orgulho: "não sou um livre pensador, sou um militante".Isso ainda é comum?Sim. Quem assim se expressou há pouco tempo foi o vice-governador da Província de Buenos Aires e a frase também foi repetida pela chefe da bancada oficialista da Câmara dos Deputados. Os militares da ditadura também se ampararam nela para justificar os crimes contra a humanidade, a tristemente célebre "obediência devida" (cumprimento de ordens). De um lado, é a síntese do fanatismo e, de outro, uma justificativa para o indivíduo se libertar das responsabilidades no futuro. Mas ocorre que o ofício do intelectual é precisamente o exercício do livre pensar. Fico surpreso com aqueles colegas escritores que costumam pronunciar essa mesma frase. Por que?Porque eles renunciaram não só à independência, mas ao pensamento. No caso daqueles que, como nós, resistem a abandonar o pensamento crítico, as coisas não são simples. Como, à época em que surgiu a imprensa, em meados do século 15, o poder insiste em ser o dono das palavras, das ideias, dos livros e do pensamento das pessoas e silenciar todo aquele que se oponha a isso.A grande invenção de Gutenberg é que de algum modo, usando termos do presente, ela democratizou a leitura. O livro, então, deixa de ser sagrado e passa a ser profano. Creio que o livro tem uma relação muito direta com os novos formatos eletrônicos e com o poder das redes sociais e dispositivos como celulares. O senhor acha que já estamos diante de uma mutação antropológica, de uma ciber-humanidade nascida numa ciberesfera? Para responder a esta pergunta, é necessário dizer de início quem foi realmente Gutenberg. Para mim, é o personagem mais importante da História. Graças a ele, o saber foi democratizado como nunca antes se observou. Contudo, poucos sabem que Gutenberg jamais inventou a imprensa. Ela jamais ocorreu, é um fato mítico. Gutenberg construiu um engenhoso dispositivo para falsificar manuscritos. Na Idade Média, uma Bíblia implicava um trabalho de dois anos de copistas, iluminadores e encadernadores. O preço de um manuscrito era equivalente ao de um palácio em qualquer cidade da Europa. Como ele fez isso?Na imprensa clandestina que montou numa abadia em ruínas, Gutenberg conseguiu fabricar a primeira Bíblia falsa. Era impossível diferenciá-la de uma feita à mão e só exigia um dia de trabalho. A fraude durou pouco tempo. Ele foi descoberto em flagrante e levado a juízo. Quando a Igreja descobriu o potencial da sua invenção, deparou-se com dois cenários: um bom e outro aterrador. O bom era que, graças à imprensa, poderia difundir os livros sagrados em grande escala. E o mal era que o temido Index Librorum Prohibitorum, a lista dos livros proibidos, poderia inundar as bibliotecas e as mentes dos futuros leitores ávidos de conhecimentos não sagrados.E o que seria do futuro do livro se ele não tivesse feito isso? Sem o surgimento deste maravilhoso fraudador, o livro teria continuado a ser um objeto sagrado e jamais teriam surgido os escritores. A partir de Gutenberg, a literatura tornou-se literalmente uma profanação, um delicioso sacrilégio. Mas talvez o mais interessante é que o primeiro livro impresso foi um livro pirata. Toda a indústria editorial teve por base aquela fraude original. Hoje ocorre o mesmo - o primeiro livro eletrônico foi um arquivo criado para piratear um livro em papel e difundi-lo pela internet. Se podemos ler e também escrever nos celulares, é graças a um hacker que, sem se propor a isto, criou a indústria do "e-book", o livro eletrônico.O livro mostra uma mudança do poder, ou seja, a imprensa de Gutenberg surge como uma enorme ferramenta de democratização e difusão contra uma Igreja detentora de todos os poderes. Como vê essa mudança? O poder sempre concebe ideias para preservar o status quo. Como disse antes, é certo que o livro impresso democratizou a difusão das ideias e o livro deixou de ser sagrado para se tornar profano. Mas a condição sacrílega do livro durou muito pouco tempo. Quando o poder não pode ir contra a corrente, então ele a bendiz e a declara santa. Foi o que sucedeu com os livros. Rapidamente, a literatura teve de abandonar sua luta contra a censura para combater algo muito mais destrutivo: a sacralização. Hoje, lamentavelmente, a literatura voltou a ser sagrada.Como assim?O poder construiu um pedestal de mármore, alto e escorregadio, de modo que são poucos o que desejam chegar a ela. O mais patético é que muitos escritores acreditam nesse papel de clérigos laicos e andam pelo mundo predicando, crendo-se superiores ao resto dos mortais. Esquecem que são filhos de um fraudador chamado Gutenberg e não daqueles que o julgaram.O livro também narra uma história policial. O senhor acha que existe uma forte relação entre a literatura de suspense e a psicanálise, no sentido de que existe sempre, em ambas, uma verdade oculta a ser descoberta? Há muito tempo deixei de ser psicanalista. Neste sentido, também me declaro agnóstico. Mas sim, de fato, O Livro dos Prazeres Proibidos é essencialmente uma história policial clássica. Começa com um homicídio e, a partir desse momento, o leitor vai desejar saber quem é o assassino. Contudo, não creio que se trata de descobrir uma verdade oculta. Talvez esteja mais inspirada na vertente de Edgar Alan Poe de A Carta Roubada, em que ninguém consegue ver a verdade porque ela está, precisamente, diante dos olhos de todos. A condição para um romance policial funcionar é colocar à vista do leitor todas as pistas para que, casualmente, ele consiga descobrir o assassino. Quando surgiu a ideia que lhe inspirou a escrever O Livro dos Prazeres Proibidos? A ideia original não incluía Gutenberg. Deveria ser uma história de suspense ambientada na época em que foi desencadeada uma guerra surda entre os primeiros impressores e os últimos copistas. Sempre me pareceu fascinante a figura do monge copista. Os copistas passavam dias, meses, anos, gerações, copiando símbolos cujo sentido ignoravam. Eram iletrados, analfabetos. Deste modo, os textos estavam a salvo. Quem não sabe ler não pode adulterar um livro. Eu me pergunto até que ponto cada um de nós não é, no fundo, um monge copista: vivemos praticando atos de maneira automática, repetitiva, sem discernimento, sem entender o porquê e para quê. É muito inquietante a ideia de alguém ter escrito nossa existência e nós não fazemos mais do que repetir coisas sem compreender seu sentido.Até que ponto é importante o ingrediente sexual neste livro? O sexo é um dos principais pilares da história. A relação entre o poder, a sexualidade e o afã pelo controle do desejo é o elemento principal que atravessa a história do princípio ao fim, até hoje. No romance, aparece um livro mítico, o Libri Voluptation Pribiturum, ou seja, O Livro dos Prazeres Proibidos. Naquelas páginas, estavam todos os segredos da sexualidade desde a época da Babilônia até a Idade Média. A Igreja ignorava se esse livro existia de verdade, mas a ideia de que ele poderia se massificar, graças ao dispositivo inventado por Gutenberg, era aterrorizadora. O leitor vai tentar descobrir a mesma coisa que o assassino procura: quem esconde O Livro dos Prazeres Proibidos. Claro que não vou contar o final do livro.O LIVRO DOS PRAZERES PROIBIDOSAutor: Federico AndahaziTradutor: Luís Carlos CabralEditora: Bertrand Brasil (294 páginas, R$ 30)

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