Nos idos de 2008, o escritor Henrique Rodrigues costumava ir para o trabalho ouvindo Acrilic on Canvas, do álbum Dois, da Legião Urbana – que, àquela altura, já tinha mais de 20 anos. Foi ali, naquelas idas e vindas, que surgiu a ideia de escrever um conto inspirado nessa música. Contou para um amigo, que também tinha uma música preferida, e falou que ia fazer o mesmo. A notícia foi se espalhando, outros escritores fãs da banda foram chegando e no dia 27 de março de 2010 foi lançada no Rio, pela Record e com organização de Rodrigues, a coletânea Como Se Não Houvesse Amanhã.
O volume traz 20 textos de nomes como João Anzanello Carrascoza, Marcelo Moutinho, Wesley Peres, Manoela Sawitzki, Ana Elisa Ribeiro, Maurício de Almeida, Susana Fuentes e muitos outros, além do próprio organizador. De lá para cá já foram impressas seis edições, com mais de 20 mil exemplares vendidos.
Hoje, exatos 10 anos depois, e no dia em que Renato Russo (1960-1996) faria 60 anos, os escritores não podem se reunir para festejar a primeira década do livro, porque estão todos isolados por causa da pandemia do coronavírus. Pensando nisso, Henrique Rodrigues os convidou a postar em suas redes sociais vídeos sobre a coletânea, com leitura de trechos. Isso tudo vai ao ar nesta sexta, 27, e, para ver, procure a hashtag #antologialegiao10anos ou visite o perfil dos autores.
“Esses autores estão espalhados pelo Brasil e pelo mundo. Ao revisitar a antologia, viram que também se tratava de uma possibilidade de comunicação com o outro e com a pessoa que foram há 10 anos”, conta Rodrigues.
Fundada em Brasília em 1982 e extinta em 1996 com a morte de Renato Russo (embora o último show tenha sido em janeiro de 1995), a Legião Urbana marcou toda uma geração de brasileiros e suas músicas foram ouvidas à exaustão nos anos 1980, 1990 e depois, com ecos ainda hoje – não apenas para os mais nostálgicos. “O interessante é que algumas questões que as canções da Legião nos trouxeram, e também as que criamos nos contos, são muito atuais: a indignação social, as relações humanas, a interrogação sobre o futuro, as (im)possibilidades do amor”, diz Rodrigues.
João Anzanello Carrascoza comenta hoje que na época escolheu Pais e Filhos pois esse já era um tema norteador de toda a sua obra contística – e que seria também dos romances que escreveu depois. “Meu conto procurou trazer, numa narrativa presentificada, o relato de um filho sobre seu relacionamento com o pai, separado da mãe, vivendo em outra casa e cidade. Lá está a força da presença mesmo na ausência, que um dia se tornaria total, com a morte desse pai”, explica.
Mauricio de Almeida escreveu seu conto inspirado na penúltima faixa do último disco da Legião Urbana, Uma Outra Estação. “Desde o primeiro momento, Sagrado Coração me comoveu. Embora conste a letra no encarte, Renato Russo não gravou a voz, ele morreu antes que pudesse registrá-la. No conto, trabalhei justamente essa situação – as coisas que ficaram por fazer ou serem ditas”, comenta. Partindo dessa ideia, o conto é narrado por um pai que, na cama de hospital, se nega a conversar com o filho. “A ausência de diálogo entre eles é movida pela crença do pai de ser melhor ao filho ter lembranças diferentes da situação em que se encontram. Eles estão juntos, talvez pela última vez, e não dizem nada, tal como a canção.”
Susana Fuentes conta a Legião Urbana fez parte de sua vida quando ela estudava Letras na UERJ e para a coletânea ela escolheu Quando o sol bater na janela do teu quarto. "Ela tinha a ver com as mudanças em minha vida, e a letra fala de caminho, pergunta, coragem e ela entra muito napele, como o sol. Tem melancolia e esperança, e escrever ouvindoa música me levou para um estado de espírito de memória, intimidade e de que tudo é dor, mas não podemos perder nossa coragem, como diz a música", comenta hoje.
Já Marcelo Moutinho se baseou na melancólica Vento no Litoral. “A canção trata de uma separação sem dar muitos detalhes. Encontrei a chave num caco que Renato Russo deixou no fim: cavalos-marinhos”, conta. Foi pesquisar e terminou com um conto também sobre infidelidade. Ramon Nunes Mello também tratou desse tema, escolhendo Sereníssima – que fala de forma poética sobre uma separação sem remorso, pontua. “Participar da antologia me fez voltar no tempo em que ouvia Renato Russo e sua Legião Urbana até decorar as letras. Sem dúvida, Renato Russo (e Cazuza, outro anjo torto) faz parte do imaginário poético de uma geração. O que ele diria do rumo que o Brasil tomou? Que País é este?”
COMO SE NÃO HOUVESSE AMANHÃ Org.: Henrique Rodrigues Editora: Record (160 págs.; R$ 49,90)