Escritora argentina Lucía Lijtmaer faz defesa do direito de protestar
Jornalista e crítica cultural analisa em ensaio como termos como 'ofendidinhos' e 'politicamente correto' influenciam o debate público
Entrevista com
Lucía Lijtmaer
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Lucía Lijtmaer
02 de janeiro de 2020 | 07h00
Analisar uma mudança na opinião e no debate público ocorrida na última década, e que diz respeito à liberdade de expressão, à censura, à tolerância e principalmente à legitimidade – quem diz e por que agora – é o objetivo do ensaio Ofendidinhos, da escritora argentina radicada na Espanha Lucía Lijtmaer. O texto está publicado na íntegra na serrote #33, a edição mais recente da revista de ensaios do Instituto Moreira Salles, já disponível nas livrarias.
A edição da serrote ainda traz “9 perguntas para o Brasil de hoje”, em que pensadores como Adilson José Moreira, Aparecida Vilaça e Milton Hatoum escrevem sobre temas como racismo, indígenas e escritores. Virginia Woolf, Claudia Rankine, Hannah Arendt e Gershom Scholem também têm textos neste volume.
Lucía Lijtmaer, de 42 anos, é crítica cultural do El País e jornalista com livros investigativos sobre política global, e no texto explora o termo “ofendidinhos”, segundo ela, difundido por “analistas ferozes” nos espaços hegemônicos do debate público, para ridicularizar e desmerecer quem se manifesta “geralmente frente a um abuso de lugares-comuns ou com um ataque a causas minoritárias”.
Com uma série de exemplos, ela ilustra como os “analistas ferozes”, ligados a uma incorreção política que não mede consequências para falar o que pensa, atacam protestos e manifestações (reais ou virtuais) como forma de deslegitimá-las. E para a autora, “algo está acontecendo quando o direito ao protesto é permanentemente ridicularizado” – e sua preocupação é que esse tipo de embate alimente “o fantasma que percorre a Europa: o fascismo”. Por e-mail, Lijtmaer respondeu a algumas questões do Estado.
Nesse capítulo me refiro a como articulistas conservadores geralmente se caracterizam como algo que chamam de “novos puritanos”, e que isso não tem nada a ver com a concepção original do termo no século 17, já que está distante da concepção individual e da relação direta com Deus: esses novos puritanos são laicos mas mantêm um novo tipo de dogma moral. O que incomoda os que batizam como “novo puritanismo” uma série de maneiras de pensar é precisamente a ausência de instituição e de noção individual. São geralmente caracterizados como “turba”, são um enxame difícil de definir, uma massa que se organiza em rede, muito própria das redes sociais, sim, mas que é uma constante da história: a ideia de a massa, como conjunto, é emocional, não racional.
Porque é sempre mais simples culpar as pessoas do que evidenciar quais são as falhas de um sistema em crise. O conservador, por padrão, abomina as manifestações.
Mais do que tolerância, creio que o texto se aprofunda na ideia de legitimidade. Quem tem a legitimidade para se expressar e protestar e quem não. A criação de conceitos como “ofendidinho”, “puritana” e “politicamente correto” busca deslegitimar. A tolerância é um conceito que se usou muito como substituição a “convivência”, e parte da necessidade de respeitar algo que não compartilhamos, mas que sempre enfrenta o feito da diferença. Me parece que não se trata somente de tolerar o que não se compartilha, isso é o mínimo que devemos esperar do outro. Talvez seja necessário se aprofundar mais na concepção inicial do termo, o respeito.
Para mim é básico começar por nos livrarmos da ideia sacrossanta de que o humor, por padrão, não é político. Há certos humoristas que, no meu país, diante de notáveis ameaças à liberdade de expressão, tomam o humor como um espaço não de diálogo, mas sim como algo sagrado, que não se pode discutir, porque se você o faz, está ameaçando a liberdade de expressão. O humor não é algo intocável, há por trás dele uma ideia e uma intenção. Alguém pode ser humorista e fazer humor racista, conservador e de direita, por exemplo. A partir daí, cada um saberá o tipo de humor que quer fazer e como ele pode ser usado como arma de ataque.
Acredito que ambos apelam ao mesmo lugar: denominar o dissidente como “ofendidinho”, como uma maneira de ridicularizar quem protesta. Nos dois casos, aliás, são exaltados valores de grandes homens de estado, de masculinidade, coragem, valentia, aos quais opõem todas as dissidências que não correspondem a esses critérios. Os valores tradicionais da masculinidade se associam a capacidade, racionalidade, inteligência, ou liderança. O ofendidinho, como o “snowflake” nos EUA, veio a substituir o tradicional insulto misógino e homofóbico com o qual se caracteriza aquele fraco demais para tomar parte no debate público. Somente o líder tradicional, por excelência, é confiável frente ao irracional ofendidinho, dizem.
É difícil generalizar, visto que cada país tem contextos e realidades muito particulares. O que vejo que está em disputa em todos os espaços é o corpo das mulheres: seus direitos reprodutivos, sua legitimidade para o prazer sexual e seu uso para a violência é algo que vemos em manifestações em países tão distintos como Irlanda, Polônia ou Argentina. Essas manifestações e a maneira com que se articulam politicamente são e serão muito importantes para o futuro.
“A história das bruxas de Salem é, sem dúvida, fascinante. Suas idas e vindas marcaram a literatura e serviram para narrar como uma comunidade pode ser virada pelo avesso quando se eliminam as barreiras mais elementares. Mas possivelmente é por sua excepcionalidade monstruosa que ela chega até nossos dias, ocultando-se a origem do caso e a quem eram dirigidas as acusações de bruxaria em sua totalidade: tanto nas comunidades puritanas de Massachusetts como nas católicas e protestantes europeias, as mulheres de meia-idade, solteiras e proprietárias de terras é que eram castigadas por serem bruxas. Salem fascina porque é excepcional. (...) Invocando Salem, as acusações se deslegitimam, os casos de abuso se minimizam. (...) Ou seja, o caráter aberrante de um episódio histórico pode servir para determinar que um discurso é hegemônico em vez de episódico. E para deixar de mencionar todos os outros casos que explicam uma estrutura sistêmica e poderosa. Ou seja, para não nos deixar ver o bosque, ou, o que é pior, para ocultá-lo.”
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