Entre a poesia e a luta pela Amazônia, Thiago de Mello dizia ter compromisso com a floresta

'Não posso mais usar metáforas nem meias palavras. Essa floresta vai secar'

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Por Leonencio Nossa
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BRASÍLIA - Thiago de Mello, que morreu nesta sexta-feira, aos 95 anos, produziu uma das obras poéticas mais imbricadas com a vida na Amazônia. Há alguns anos estive com ele em Manaus. O encontro ocorreu numa viagem pelo Amazonas e seus afluentes com o amigo fotógrafo Celso Júnior para escrever um livro sobre o rio.

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Autor de poemas traduzidos para mais de 30 países, o poeta morava uma parte do ano na capital, onde passou a infância, e Barreirinhas, no interior.

Na andança pelas ruas de Manaus, percebi o desconforto do poeta com as mudanças urbanísticas, a poluição dos igarapés. Em cada gesto e expressão, ele reafirmou a força de sua poesia na crítica à destruição da floresta e no compromisso com homens e mulheres da Amazônia.

Opoeta e tradutor Thiago de Mello Foto: Sebastián Silva/ EFE

No início de uma tarde ensolarada, chegamos de táxi ao prédio onde Thiago morava, na margem do Rio Negro, 15 minutos atrasados. Com camisa, calça, meias e sapatos brancos, ele estava apreensivo. Mal o cumprimentei, reclamou da demora. Pus a culpa no trânsito.

Por sugestão de Thiago, procuramos um lugar “agradável” para conversar. Mais à frente, dentro do carro, pediu para pararmos numa ponte sobre um igarapé. Ali, segundo ele, renderia boas fotos. Sob sol forte, mostrou as águas do riozinho que estavam sujas. O lixo se acumulava nas margens. Houve um mal-estar no momento de tirar a foto. Acho que a sujeira do igarapé o pegou de surpresa.

Retornamos ao carro. No banco da frente, ele começou a falar da Amazônia. “A vida na floresta é regulada pelo tempo do rio. O tempo da vazante, da abundância, do peixe, da farinha. E o tempo da miséria, que é a cheia, quando o verde desaparece. Mas sempre sobram uns peixinhos. É a pobreza, a escassez, o rio inunda a várzea, transforma tudo em igapó. O caboclo sobrevive do peixe e da farinha.”

Passamos pela Rua Silva Ramos, depois pela avenida Getúlio Vargas, onde ainda havia casas do período áureo da borracha. “Vim de Barreirinha para cá com 5 anos. Estudei aqui o primário e o ginásio. O verde sempre foi uma questão polêmica em Manaus. Estão vendo essas árvores plantadas na rua?”, perguntou. “O governador Plínio Coelho plantou esses fícus, que dão sombra na avenida. Foi vaiado.”

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O mormaço em Manaus estava quase insuportável. Thiago estava visivemente irritado com o buzinaço e o gás dos ônibus e caminhões. O tráfego era interrompido, minutos depois voltava a fluir. Um carro fechou o taxista, que por pouco não bateu na lateral de outro veículo. “Este gás carbônico do carro é o pior dano ao planeta”, reclamou.

O trânsito parou novamente. Thiago parecia fazer um esforço para manter a paciência, demonstrar que tinha o espírito tranquilo de um caboclo.

Abri um livro de Thiago para tentar retomar a conversa. Em um trecho o poeta escreveu que o rio nasce a cada instante. “Em Amazonas, Pátria das Ááguas o senhor escreve que as neves são eternas na Cordilheira dos Andes, onde nasce o rio”, comentei.

“Não são eternas”, disse, ríspido.

Falamos sobre o exílio dele no tempo da ditadura militar brasileira. Numa carta lida por intelectuais chilenos em 1965, o futuro Nobel de Literatura Pablo Neruda escreveu que Thiago despertou o Chile da tristeza e chegou a mudar o rumo dos ventos da cordilheira, tamanha a influência na alma dos amigos em Santiago. “Thiago pasa por nuestras almas para invitarmos a vivir”, disse Neruda.

Chegamos à praça da Saudade, novo local escolhido por Thiago para a conversa.

“Se estivesse em Barreirinha poderia mostrar uma obra de Lúcio Costa na floresta amazônica, a minha casa.”

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Ambiente bucólico

Naquela Manaus barulhenta, talvez falar de Barreirinha era evocar o refúgio absoluto. Eu também esperava retratá-lo num ambiente bucólico, verde, diante do rio em dia de calmaria e poucos ventos. Mas o homem que na poesia ousou dizer que o rio, o maior de todos, em volume e extensão, era ele mesmo, estava impaciente.

Sentamos num banco de cimento. “Vou vivendo. Aprendi a nadar no Amazonas antes de aprender a andar. Minha mãe lavava roupa no Andirá. Eu tinha 4 anos quando me jogou na água. Estou nadando até hoje.”

Contou que depois de enfrentar o exílio, retornou à Amazônia por se sentir em dívida com o rio. “Eu devo muito ao rio, por isso retornei, porque o verde já era metáfora de meus primeiros livros. Vento, nuvens, madeira.”

Reclamou dos madeireiros “perversos” e empresários “impiedosos”. “Criam gado, plantam soja e vendem a madeira no contrabando.”

Observou que não havia mais caboclos remando nas proximidades de Manaus. “É só na rabeta. Mesmo com esse vento, não se usava vela. O caboclo aprendeu com o vento. Agora, há o consumo de diesel e gasolina para as embarcações. Os rios, paranás, igarapés e lagos estão todos manchados de óleo”, disse. “A ambição e a ganância transformam esse humano em bicho feroz, que mata a floresta, mata a casa da vida”, ressaltou. “Minha poesia é comprometida com a vida do ser humano, das crianças que vão nascer ainda. A arte tem compromisso com a beleza. A poesia tem de ter utilidade estética.”

Minha poesia é comprometida com a vida do ser humano, das crianças que vão nascer ainda

Thiago de Mello, poeta

“A cada dia, o senhor abdica mais das metáforas; sob certo aspecto, da própria poesia, para gritar contra a destruição do rio e da floresta?”

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“Você deve compreender um certo constrangimento que a maioria dos meus textos causa. Já não vale a minha esperança.”

“O senhor abre mão de ser poeta para defender as águas?”. Ele demonstrou ter gostado da pergunta. “Não posso mais usar metáforas, nem meias palavras”, disse, com ênfase. “Essa floresta vai secar. Gás natural, carvão, as hidrelétricas. Transformaram a água em inimiga. Estamos agora falando em amenizar as consequências da água na vida do planeta. Diante do egoísmo e da arrogância, a solidariedade humana parece um pássaro em extinção. O aquecimento vai causar a ruína da humanidade.”

Comento sobre Os Estatutos do Homem, poema em que Thiago diz que um homem confiará no homem como um menino confia em outro menino, fica permitido a qualquer hora da vida o uso do branco e que só amar sem amor fica proibido. “Eu fiz a opção. Entre o apocalipse e a utopia estou com a utopia.”

Ele voltou a falar das Cordilheiras, paisagem que percorri no começo daquela viagem. “As geleiras de onde vocês vieram, lá dos Andes, eram eternas na minha juventude. Pude ver que eram brancas. Eram mármores de gelo, e eram eternas.”

“Quando o senhor pensa no rio, o que vem à mente?”

“No mundo inteiro vejo a água. O rio é água. O Amazonas é água.”

O táxi parou em frente a uma clínica, da avenida M. Coutinho, onde ele teria uma consulta médica. Era o fim do passeio por uma Manaus menos verde. Do lado de fora do carro ele nos fez uma sugestão: “Ouçam bem as pessoas de Óbidos, conversem sobre os efeitos do mercúrio. Leiam ‘O rio comanda a vida’, do saudoso Leandro Tocantins. Ele fala do tempo de vazante e de cheia”, disse Thiago, homem da floresta e da poesia de combate.

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