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'Enciclopédia Negra' aposta na força dos dramas particulares para humanizar a história

Obra monumental organizada pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes e Lilia Moritz Schwarcz e pelo artista Jaime Lauriano traz verbetes biográficos e retratos de personalidades negras que construíram o Brasil

Por André Cáceres
Atualização:

Nascido na Bahia em 1755, o padre Joaquim de Souza Ribeiro se formou em Direito em Coimbra e conseguiu em audiência com o papa Pio VI a permissão para ser missionário na América espanhola, onde foi possivelmente o único brasileiro a testemunhar a revolução haitiana. Entre idas e vindas, ele foi preso duas vezes, tentou contato com Napoleão Bonaparte e viajou por diversas partes da Europa e das Américas. Essa vida cinematográfica – quase um Forrest Gump da Era das Revoluções – é apenas uma entre as mais de 500 pessoas retratadas na Enciclopédia Negra, obra monumental organizada pelos historiadores Flávio dos Santos Gomes e Lilia Moritz Schwarcz e pelo artista Jaime Lauriano.

Retratada por Bruno Baptistelli, ela lutou na Justiça para ser libertada mesmo aos 60 anos e após pagar a alforria Foto: Pinacoteca do Estado de São Paulo/Companhia das Letras

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Seguindo a máxima da jornalista Eliane Brum, para quem “é mais difícil encontrar ‘um em um milhão’ do que encontrar um milhão”, a Enciclopédia Negra enfatiza a narrativa do indivíduo para humanizar a história. Em vez de falar sobre as enormes cifras de africanos sequestrados e escravizados no Brasil e em outras rotas afro-atlânticas, o livro opta por lançar luz sobre dramas particulares, muitos dos quais pouco ou nada conhecidos, a fim de mostrar as pessoas comuns cujas vidas foram marcadas pelas engrenagens da História com H maiúsculo.

Em um formato enciclopédico, a obra traz verbetes individuais ou coletivos que narram, em poucas linhas, as vidas de pessoas negras, algumas nascidas no Brasil, outras trazidas para cá, algumas famosas e outras anônimas. Líderes religiosos, escritores, músicos, políticos, esportistas dividem espaço com pessoas comuns sobre as quais pouco se sabe, mas cujas vidas oferecem vislumbres de um Brasil mais diverso do que a história contada nas carteiras escolares costuma sugerir.

“Nossa vontade é mudar a imaginação dos brasileiros. Temos uma historiografia oficial ainda muito europeia, muito colonial, muito masculina”, afirma Lilia em entrevista ao Estadão. “Temos episódios conhecidos, mas não temos protagonismo dessa população de origem africana. Sabemos muito pouco que vidas são essas. Por vezes, não sabemos nem as datas de nascimento e morte.” “Este livro só pôde ser escrito a partir de uma historiografia crítica no Brasil que vem desde o final da década de 1980”, diz Flávio ao Estadão. Segundo ele, o processo de pesquisa e organização da obra dependeu, em grande medida, da busca em acervos e da literatura já existente por personagens que possam ter sido negligenciados. Um exemplo disso é que os autores se desafiaram a equiparar a quantidade de homens e mulheres retratados. “É como se fosse uma educação da leitura e do olhar: procurar mulheres, localizar mulheres negras, um silêncio dentro do silêncio.”

O militar Emiliano Munducuru, retratado por Moisés Patrício, participou na revolução de 1817 e na Confederação do Equador Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Para Lilia, ao desconstruir a história oficial e refundar o imaginário coletivo do que é a vivência negra em um país como o Brasil, a Enciclopédia Negra teve a intenção de ser um trabalho menos acadêmico e mais convidativo ao público em geral. “A ideia é trazer mais subjetividade e não resumir essa enciclopédia a uma história da escravidão. Mostramos que houve escravizados, rebeldes, sim, mas também alfaiates, fotógrafos, mães que fogem grávidas para que o filho continue livre, histórias de um repentista, um palhaço, personagens afro-atlânticos que vieram da África para o Brasil, depois para o Caribe, Estados Unidos...” Muitas dessas histórias, como a do padre Joaquim, mencionada no início desta reportagem, daria ótimo material para a arte. “Cada uma delas pode resultar num romance, numa novela, num livro, numa história em quadrinhos, ou apenas despertar o afeto, porque visam afetar o público no nível do afeto, que o público se sinta tocado por essas histórias”, afirma Lilia. No entanto, apesar dessas tramas, é na simplicidade das vidas anônimas que reside um brilho oculto da Enciclopédia. “A gente sempre foi à procura não de personagens espetaculosos, mas fomos atrás de gente comum”, garante Flávio. Nesse grande mosaico, Lilia e Flávio buscaram manter não apenas equilíbrio de gênero, encontrando até raras personagens transexuais nos primeiros séculos do Brasil, mas também uma certa paridade na representação dos Estados, trazendo histórias de todas as regiões do País, incluindo de locais que ainda não eram oficialmente parte do Brasil durante as vidas desses biografados, como Acre e Mato Grosso do Sul. Houve também a preocupação de trazer à tona narrativas passadas em todos os séculos, não se atendo apenas a um período. “O único critério é que a pessoa teria que ter falecido até a publicação”, explica Lilia. “Fizemos um adendo à introdução para incluir a história do Beto Freitas, porque achamos que não podíamos deixar isso de lado”, diz a historiadora em referência ao homem negro morto por seguranças de uma unidade do Carrefour em Porto Alegre. Talvez seja justamente essa diversidade o grande mérito da obra: resgatar de um silêncio às vezes de décadas, às vezes de séculos, vozes suprimidas pela violência sobre a qual se construiu o Brasil. “O silêncio tem um som estrondoso, porque é como silenciar vidas inúmeras”, arremata Flávio. “Essas pessoas sempre fizeram parte da história do Brasil, nós é que optamos por invisibilizá-las e silenciá-las”, concorda Lilia.

Enciclopédia visual

Além dos verbetes escritos, a Enciclopédia Negra traz 36 retratos produzidos por artistas de técnicas, idades e estilos diversos, entre quadrinistas (como Marcelo D’Salete, autor de obras de grande relevância nos últimos anos), pintores, fotógrafos e outros. E outros 80 retratos somam-se a esses em uma exposição que será aberta na Pinacoteca quando a situação da pandemia se abrandar.

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Pretextado dos Passos e Silva, retratado poDesali,criou uma escola para pretos e pardos na própria casa em 1855 Foto: Companhia das Letras/Pinacoteca do Estado de São Paulo

Jaime Lauriano, que fez a curadoria visual do trabalho, contou que tentou traçar paralelos entre retratistas e retratados: “Busquei os artistas que mais tinham em sua poética a proximidade com os temas com os quais a gente estava trabalhando. Fizemos uma mistura entre a vida do biografado, do retratado, e a vida do artista retratante”. Para ele, um dos processos mais interessantes nessa questão foi “estudar a poética do artista e entender como seus aspectos ressoavam com a história do biografado”. Além de fazer com que os retratos se tornassem “materializações da vida dos biografados”, Jaime ressalta que as 106 obras serão doadas ao acervo da Pinacoteca após a exposição. “Queríamos fazer uma intervenção na arte brasileira, porque a Pinacoteca tem o maior acervo de retratos do Brasil, mas a maioria é de pessoas brancas. Quando chegamos com 106 obras dentro desse acervo, e a Pinacoteca nunca teve uma doação desse volume, fizemos uma intervenção na noção do que é um retrato, uma reflexão sobre um dos cânones mais antigos da história da arte, que é o retrato”. Para Jaime, os retratos não são um mero complemento da Enciclopédia: “O projeto como um todo é uma forma de debater e desconstruir os cânones”.

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