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Emily Dickinson do século 21 encontra sua morada nos arquivos

A série 'Dickinson' está doando dezenas de figurinos, adereços, cenários e móveis de época para o Museu Emily Dickinson e para a Biblioteca Houghton de Harvard

Por Jennifer Schuessler
Atualização:

Dickinson, a série Apple TV+, ganhou elogios por sua abordagem existencial e um tanto absurda da vida de Emily Dickinson, transformando a poeta numa protofeminista entusiasmada que tenta viver em tempos tão tumultuados quanto os nossos. Mas mesmo seus voos fantasiosos mais extravagantes se basearam em estudos históricos e teorias literárias de ponta, o que angariou para a série uma base de fãs ardentes mesmo entre os especialistas.

Christine Jacobson, à esquerda, curadora assistente de livros e manuscritos modernos, e Marina Parker, a designer de produção da série 'Dickinson', examinam um álbum de recortes gigante que Parker fez na Biblioteca Houghton de Harvard. Foto: Matt Cosby/The New York Times

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Agora, a série que nasceu dos arquivos está voltando ao lar de onde viera, para toda a Eternidade - como Dickinson poderia dizer.

A série, cuja terceira temporada chegará ao fim em 24 de dezembro, está doando dezenas de figurinos, adereços e móveis de época para o Museu Emily Dickinson em Amherst, Massachusetts, onde serão usados para passar uma ideia de sua vida cotidiana na herdade dos Dickinson.

E, numa reviravolta, está doando também seu arquivo de produção de roteiros, figurinos e cenários para a Biblioteca Houghton da Universidade de Harvard. O conjunto abarca as meticulosas recriações dos manuscritos de Dickinson feitas para a série, as quais ficarão lado a lado com os manuscritos de verdade.

O anúncio está vinculado ao aniversário de Dickinson, na sexta-feira, celebrado em ambos os lugares numa festa virtual com poesia, homenagens artísticas e alguma diversão possível com o famoso bolo preto dos Dickinson (que teve destaque nos episódios da segunda temporada).

Esboços, com amostras de tecido, da figurinista Jennifer Moeller, da série 'Dickinson' na Biblioteca Houghton de Harvard. Foto: Matt Cosby/The New York Times

“É um presente de aniversário para Emily”, disse Alena Smith, a criadora da série, sobre as doações. A coleção da série, ela disse, é um “tesouro de coisas bonitas” que, tanto quanto a novíssima trilha sonora e os diálogos de Geração Z, também contribuiu para seu caráter subversivo.

“Tudo o que você vê na série tinha que ser precisamente perfeito no que diz respeito ao período, para que a música e a linguagem pudessem realizar seu ato de rebeldia contra essa perfeição”, disse Smith.

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Jane Wald, diretora do museu, visitou o set na primavera passada. Ela pensou que iria escolher apenas algumas peças. O museu acabou carregando vários caminhões, trazendo móveis, luminárias e um dos adereços mais fantasiosos da série: a carruagem conduzida pela Morte, interpretada pelo rapper Wiz Khalifa. Todos esses itens irão mobilar a casa (que está fechada para obras até a primavera) em autêntico estilo oitocentista, de acordo com um projeto preexistente.

“É um legado que se mistura com outro, tudo é um jeito de reconhecer o tipo de poder atemporal que tem a poesia de Emily Dickinson”, disse Wald.

A doação para a Biblioteca Houghton de Harvard é a primeira aquisição da biblioteca junto a um programa de televisão, de acordo com Christine Jacobson, curadora assistente de livros e manuscritos modernos.

Um medalhão mostrando Ella Hunt como a cunhada de Emily Dickinson, Sue, na Biblioteca Houghton de Harvard em Cambridge. Foto: Matt Cosby/The New York Times

Jacobson começou a seguir Smith no Twitter em 2018, depois que soube da série quando a produção solicitou permissão para reproduzir um retrato de propriedade de Harvard. Elas começaram uma amizade virtual (criando um vínculo por causa de uma paixão secundária pela literatura russa) e, no verão passado, quando Smith perguntou se Houghton queria materiais do programa, ela se animou.

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A coleção será útil para estudiosos de Dickinson, ela disse, mas também para pesquisadores da cultura de fãs - área onde Dickinson, graças à série, está começando a alcançar o Universo Jane Austen, que vive em constante expansão.

“Qualquer pessoa pode assistir a Dickinson, a série, para ver as evidências da duradoura ressonância cultural de Dickinson”, disse ela. “Mas, para saber o que os criadores estavam pensando, quais eram seus processos, quais são suas influências, você tem que vir à biblioteca.”

A doação para Houghton abrange muitos itens que documentam e incorporam a estética de colagem velho-novo da série, como “livros de tonalidade” que se parecem com álbuns de recortes (os quais justapõem, digamos, imagens de mulheres vitorianas com crianças do Brooklyn do século 21) e outro livro que ilustra a criação da animação vitoriana da abertura.

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E também tem os itens de papel usados para representar o verdadeiro drama da vida de Emily: sua escrita.

Uma coleção de poemas escritos em fragmentos de envelope ou reunidos em livros costurados à mão, conhecidos como fascículos, da série 'Dickinson' na Biblioteca Houghton de Harvard. Foto: Matt Cosby/The New York Times

Dickinson, que morreu em 1886, aos 55 anos, publicou apenas um punhado de poemas em vida. Mas cada uma das três temporadas da série traz um tipo de publicação, junto com especulações sobre suas circunstâncias e como isso contribuiu para a decisão final de Dickinson de não buscar a fama.

A doação de Harvard traz reproduções de jornais do século 19 (com manchas de tinta e tudo), como o Springfield Republican, no qual Dickinson publicou A Narrow Fellow in the Grass, em 1866. Também há cópias do The Constellation, um jornal abolicionista fictício (baseado no periódico de Frederick Douglass, The North Star), que Henry, um fictício empregado afro-americano dos Dickinson, publica clandestinamente em seu celeiro.

Estes itens já foram apresentados em aulas sobre jornais do século 19, disse Jacobson. Mas são as recriações dos manuscritos de Dickinson - com várias dezenas de recriações de livros costurados à mão, conhecidos como fascículos, que sua irmã, Lavinia, encontrou dentro de um baú após sua morte - que podem incendiar corações acadêmicos.

“Os materiais de Dickinson são tão frágeis que dificilmente estão disponíveis para serem examinados”, disse Deidre Lynch, professora de inglês em Harvard que escreveu sobre a história do livro e a cultura literária dos fãs do século 19. “Quando a coleção chegou a Houghton, foi especialmente maravilhoso, entrar numa sala e ver os itens de papel da série espalhados sobre a mesa, em tamanho real e tridimensional”.

“A série esteve maravilhosamente atenta às muitas formas em que a escrita pode ser encontrada na América do século 19”, acrescentou ela.

Apesar de toda a precisão, a equipe de produção fez alguns ajustes. Por exemplo, no final da 1ª temporada, quando Emily faz seu primeiro fascículo, ela costura poemas escritos em envelopes e outros papéis diversos (nos quais Dickinson costumava escrever, especialmente mais tarde na vida). Os poemas dos fascículos de verdade, que depois descosturados pelos editores, foram copiados em folhas de papelaria dobradas.

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“Quando vi os fascículos da série pela primeira vez, fiquei maravilhada”, disse Jacobson. “Mas estou realmente interessada nos desvios, nos momentos em que a série evitou o registro histórico e por quê”.

TRADUÇÃO DE RENATO PRELORENTZOU

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