Em 'Visão Noturna', Tobias Carvalho escreve contos deliciosamente perturbadores

Segundo livro do gaúcho explora mundo dos sonhos, lembrando a ficção científica de Ted Chiang e o “horror tropical” do uruguaio Ramiro Sanchiz

PUBLICIDADE

Por Paula Sperb
Atualização:

É um lugar-comum da crítica literária usar expressões como “o autor amadureceu” ou “o escritor apresenta um texto mais maduro”, por exemplo, para se referir a um novo trabalho ficcional mais consistente de determinado autor.

O fato é que o romancista gaúcho Tobias Carvalho apresenta uma prosa mais requintada e saborosa, em Visão Noturna (Todavia, 2021), seu segundo livro.

Tobias Carvalho, autor de 'As Coisas', em foto no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo Foto: Valeria Gonçalvez/Estadão

PUBLICIDADE

Em sua obra de estreia, As Coisas (Record, 2018), as narrativas curtas de Carvalho lembravam a literatura do também gaúcho Caio Fernando de Abreu, no seu aspecto mais underground, mas com ares de geração Z. Os textos de As Coisas são fragmentados e às vezes parecem inacabados como as relações líquidas da pós-modernidade. O livro venceu o Prêmio Sesc de Literatura de 2018. Agora, em Visão noturna, Carvalho publica quatro contos belamente lapidados e que exploram os recursos narrativos deste gênero literário, obtendo o que se convencionou chamar de “efeito”.

Se em As Coisas ecoava a atmosfera dos contos de Caio Fernando Abreu versão nativo digital, em Visão Noturna Carvalho se aproxima do excelente contista Ted Chiang, autor de História da sua vida e outros contos (Intrínseca, 2016) e Expiração (Intrínseca, 2021). Chiang é um notório contista de ficção científica e fantasia, mas tal rótulo é insuficiente para sua literatura desconcertante. Seus contos são impressionantes, mas convincentes. Assim são os contos deliciosamente perturbadores de Carvalho em Visão Noturna. No mundo dos sonhos, nada precisa fazer sentido e, ao mesmo tempo, tudo faz sentido. Este é o pacto que o leitor precisa fazer com o narrador das histórias: não questionar as regras da física, do tempo e espaço, e entregar-se à imaginação ali apresentada com tintas de inconsciente.

O conto que abre o livro, Turno da noite, apresenta um rapaz que desenvolve a capacidade de sonhar lucidamente. Assim como Chiang, que trata de questões existenciais como o livre arbítrio no conto A ânsia é a vertigem da liberdade, o narrador de Turno da noite” parece nos convidar a refletir se estaríamos dispostos a sacrificar a idealização dos sonhos pela imprevisibilidade do mundo real.

Os sonhos também aparecem em Arromanticidade. Neste conto, mãe e filha lidam com o trauma e a culpa de terem vivenciado um acidente no dia da festa tão aguardada de aniversário da criança: a amiga da filha pega fogo ao acender as velas antes que os convidados cheguem.

Como diz o título, Eu tenho um sonho recorrente não escapa do mundo onírico. Um jovem tenta entender por que sempre sonha com seus colegas de escola, que inicialmente cometiam bullying contra ele. Na sua busca, descobre a existência de uma esquecida colega e melhor amiga. A garota é uma indígena, Maya, originária da região do Pantanal. Sua personagem desperta o aspecto fantástico do conto.

Publicidade

Este elemento também estabelece uma conexão com a narrativa de Hermílio e Ygor, ponto alto do livro. No Pantanal, na região fronteiriça entre Brasil e Bolívia, uma jornalista passa a investigar o mistério que envolve um cultuado livro chamado “O homem é um bicho”, do escritor mato-grossense Hermílio Silva, que se baseava nos seus próprios sonhos para escrever. A obra, descobriu-se anos após seu lançamento, tinha a capacidade de prever fatos do futuro. O enredo fica mais envolvente com a relação entre o escritor e um pajé de uma aldeia indígena próxima. Ao pajé e sua tribo eram atribuídos poderes de conexão com o mundo dos sonhos. A atmosfera de um certo horror tropical dialoga com o romance Verde (Fin de Siglo, 2016, sem tradução no Brasil) do uruguaio Ramiro Sanchiz. Na obra do uruguaio, um garoto descobre uma criatura aterrorizante em Pinamar, praia não muito longe da capital Montevidéu. A Amazônia já habitava a mente do menino, que leu livros sobre expedições na região. A presença da criatura desencadeará reações até sua vida adulta, quando ele próprio estará na floresta brasileira.

Juntos, os quatro contos de Tobias Carvalho formam um conjunto coeso. Visão Noturna é o bilhete aéreo que precisamos para escapar da realidade.

*Doutora em Letras com estágio pós-doutoral na UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul)

Tobias Carvalho, autor de 'As Coisas', em foto no Sesc 24 de Maio, no centro de São Paulo Foto: Valeria Gonçalvez/Estadão
Comentários

Os comentários são exclusivos para assinantes do Estadão.