Em 'Tchevengur', Andrei Platonov narra com poesia e paródia o paraíso terrestre comunista

Um dos mais difíceis livros da literatura russa do século 20 foi proibido por ser considerado uma crítica à utopia socialista

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Por Aline Veras
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O escritor e jornalista soviético Serguei Dovlátov escreveu que, quando ele tinha apenas três semanas de vida, no outono russo de 1941, ele e a mãe foram evacuados para Ufá, cidade que está a mais de mil quilômetros da capital Moscou, por causa do cerco nazista a Leningrado (São Petersburgo). A mãe de Dovlátov nunca esqueceu do estranho que a parou na rua: um homem com um rosto feio e triste, mas simples, como o de um mujique (camponês). O estranho queria apertar o bebê que passeava no carrinho com mãe, que, indignada, o lembrou da guerra que estava acontecendo e que mataria milhões de pessoas somente na Rússia. “Sim, uma guerra está acontecendo. Está acontecendo na alma de cada um de nós. Adeus.”, respondeu o estranho.

Dovlátov, 32 anos depois do episódio, escreveu um artigo sobre o desconhecido passeante do boulevard convencido de que se tratava de ninguém menos do que Andrei Platonov (1899-1951), um dos maiores nomes da literatura soviética. Segundo o autor de Parque-Cultural, Platônov esteve em Ufá durante todo o mês de outubro de 1941, e que durante uma viagem de trem lhe roubaram a mala, dentro da qual continha tudo de mais caro e precioso para seu dono: seus manuscritos.

O russo Andrei Platonov Russo morreu em 1951 sem ter visto seu romance publicado integralmente Foto: Wikimedia Commons

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Nunca se saberá se Serguéi Dovlátov estava certo ou não, mas a anedota do estranho excêntrico se encaixa bem na figura de Andrei Platonov e nas inusuais personagens de Tchevengur. O livro, publicado pela editora Ars et Vita e traduzido a quatro mãos por Maria Vragova e Graziela Schneider, é o único romance concluído de Platonov, e que só foi publicado integralmente na Rússia em 1988, três anos antes do colapso da União Soviética - o  livro foi escrito entre os anos de 1927 e 1929 – e 37 anos depois da morte de seu autor.

O romance pode ser dividido em duas partes. Na primeira, a ação se passa na Rússia pré-revolucionária, num cenário de pobreza e fome onde acompanhamos o desenvolvimento humano do protagonista, Aleksandr Dvánov; na segunda parte, surge a Rússia pós-revolução bolchevique, nos anos de 1920, quando ainda ocorria a guerra civil entre “brancos” e “vermelhos”. A partir deste trecho acontece o desenvolvimento político de Dvánov que, ao lado do amigo Stepán Kopienkin e o cavalo Força Proletária, viaja pelas estepes russas para “encontrar o comunismo entre a população” até chegar na estranha cidade chamada Tchevengur, o paraíso terrestre comunista.

Em Tchevengur, um grupo de estranhos, à beira da insanidade, está construindo o comunismo – ou o que os membros desse grupo entendem por comunismo. As pessoas deslocam suas casas para ficar mais juntas, ninguém trabalha, não existe propriedade privada e todos vivem num sistema totalmente baseado na energia solar. O que Dvánov e Kopienkin encontram, em Tchevengur, é um comunismo amador, semelhante às ideias religiosas baseadas em versículos do Apocalipse que diz que Cristo virá pela segunda vez, após o qual virá o Juízo Final e a Eternidade. Mas a nova vida tão desejada não traz felicidade, a decepção leva a novas ondas de violência, a ordem de vida estabelecida em Tchevengur gradualmente se desintegra e, no final, a utopia finalmente perece.

Tchevengur traz alguns traços autobiográficos de Andrei Platonov. Assim como o protagonista Aleksandr Dvánov, Platônov cresceu em uma família numerosa e pobre, de classe trabalhadora; o pai era maquinista e mecânico nas ferrovias, destino parecido com o do personagem Zakhar Pávlovitch, homem que adota Dvánov como filho. O próprio Platônov se formou numa escola ferroviária, participou da guerra civil como correspondente da linha de frente e construiu usinas de energia na província de Voronej, sua cidade natal.

Até chegar, hoje, aos leitores brasileiros, o romance foi proibido na Rússia por quase 60 anos. Depois de concluída a escrita do romance, em 1929, Andrei Platônov chegou a dar o manuscrito de Tchevengur para Maksim Gorki, o principal escritor proletário da União Soviética. Gorki disse que a obra não teria apoio para a publicação, pois as personagens são irônicas, anárquicas e são mais excêntricas e loucas do que revolucionárias. De fato, o livro não foi aprovado pela censura pois a narrativa foi considerada uma crítica à utopia socialista, e nunca foi publicada durante a vida de seu autor.

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Tchevengur é um reflexo da era da revolução e da construção do socialismo. Um tempo em que uma utopia socialista, o paraíso na terra, é proclamada por camponeses sectários e cismáticos. Tchevengur, que, segundo uma teoria, seria a abreviação de Tchryezvytchaynyi voyennyi nepobedimyi gepoitchyeskiy ukreplyonnyi rayon, algo como Área Extraordinária Heroica Invencível Militar Fortificada, traz uma linguagem poética e paródica que torna a narrativa um dos textos mais difíceis da literatura russa do século20. Será exigida uma leitura atenta por parte do leitor por sua difícil e estranha prosa, assim como todas as grandes obras-primas requerem, mas que valerá a pena.

'Tchevengur', de Andrei Platonov, ganha primeira tradução no Brasil Foto: Editora Ars e Vita

Tchevengur Autor: Andrei Platonov Editora: Ars e Vita (584 págs,; R$ 102)

Aline Veras é jornalista e mestre em língua e literatura russa pela Universidade Estatal de Moscou

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