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Em 'Supernormal', Pedro Henrique Neschling combate a intolerância

Cuidadoso, o escritor fez uma intensa pesquisa antes de começar a escrever

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Por Ubiratan Brasil
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Pedro Henrique Neschling continua mais lembrado como ator, diretor, roteirista e dramaturgo, mas sua carreira como escritor ganha contornos cada vez mais nítidos. Depois de estrear em 2015 com Gigantes, no qual, ao acompanhar os anos de amadurecimento de cinco amigos, mostrou o caminho da transformação do homem, ele retoma seu interesse pelos relacionamentos humanos (que norteia sua literatura) em Supernormal, que traz um tema ao mesmo tempo delicado e urgente, especialmente em tempos de intolerância.

O autor. O argumento da história nasceu da sua vontade de fazer uma releitura de 'Procura-se Amy', filme de Kevin Smith Foto: Fabio Motta/Estadão

+++ Em 'Gigantes', Pedro Neschling retrata uma geração que descobre seu lugar no mundo Beto é um rapaz cuja vida segue uma linha sem grandes novidades: jovem advogado, trabalha no escritório da mãe e, quando não está almoçando com colegas do trabalho, mata o tempo ouvindo suas bandas preferidas. Até o momento em que conhece Helena - na verdade, trata-se de André, seu melhor amigo na adolescência e que agora é uma mulher trans. Depois do choque, Beto sai da zona de conforto e não apenas tenta entender a transição enfrentada pelo amigo como também passa a levantar dúvidas sobre sua própria realidade.+++ Venda de ingresso da Flip 2018 começa na terça-feira, 26 “No livro, trato justamente das rupturas da norma”, comenta Neschling. “Em nossa sociedade patriarcal e machista, uma mulher se desconstruindo como protagonista não serviria a isso. Quem entra nessa espiral de autoquestionamento precisava ser o ‘padrão do padrão’, o detentor maior de privilégios, ou seja, um sujeito como o Beto. E esse processo é justamente consequência do reencontro com essa pessoa tão importante em seu passado, que é uma mulher trans e que ele jamais imaginou ser assim quando conviviam. Descobrir a transição sexual pela qual Helena passou gera um outro tipo de transição no Beto. E é disso que o livro trata.”+++ Simon Sebag Montefiore recupera a imagem de Catarina II, a Grande, e Grigóri Potemkin em livro Cuidadoso, o escritor fez uma intensa pesquisa antes de começar a escrever, a fim de evitar mal-entendidos. “Em termos de protagonismo, a história fala do Beto, um homem branco hétero cisgênero, bastante privilegiado, e sua dificuldade de lidar com o desconhecido, com o diferente. No entanto, tive bastante cuidado em pesquisar, entrevistar e me aprofundar na realidade das transexuais para evitar construir a Helena - personagem fundamental na história - como qualquer tipo de estereótipo clichê de uma trans na visão cisgênera e, mais que isso, escorregar nas muitas cascas de banana que a ignorância sobre a realidade dessas pessoas me colocava”, conta ele que, além de ler e de assistir a inúmeros documentários, conversou com mulheres trans generosas e disponíveis que compartilharam suas histórias e experiências.+++ Roberto Saviano critica ministro italiano que ameaça tirar sua escolta policial Papel fundamental teve Amara Moira, travesti, doutora pela Unicamp. “Costumo dizer que é uma pessoa que veio do futuro”, observa Neschling. “Esse encontro foi fundamental para o livro ser como é. A leitura e os apontamentos editoriais da Amara - não só por sua vivência trans, mas por ser uma escritora e crítica literária fantástica - foram fundamentais para dissolver os nós que ainda estavam ali e eu não sabia mais identificar.”Desconstruir. Se, em Gigantes, Neschling revela seu cuidado ao tratar de transições que configuram a vida de uma pessoa quando adulta, em Supernormal, ele avança em um terreno movediço, mas volta de lá com troféus preciosos. Engana-se, por exemplo, quem acreditar que o livro se concentra em torno de Helena - depois da surpresa provocada pela sua entrada na trama, Neschling equilibra o interesse do leitor entre a trajetória de Helena e a desconstrução sofrida por Beto. “Trato da desconstrução do Beto através da Helena, falo sobre o momento em que nos questionamos se o que somos é o que queremos ser ou se somos meros reféns do caminho que percorremos”, conta o escritor, decidido a levar a história ao cinema. “E a amizade e o carinho que Beto e Helena têm um pelo outro é a mola que o impulsiona nessa jornada de autorredescobrimento, e, claro, como qualquer mudança interior, nunca é imediata. Busquei deixar essas dificuldades claras, assim como as inevitáveis recaídas em busca do antigo mundo comum.” Como vivemos em um momento de transição (“Estamos entre o que deixou de ser e o que ainda não é”, já afirmou Zygmunt Bauman), isso se torna ainda mais desafiador. “Torço para que os conflitos do protagonista desse livro toquem e questionem as pessoas hoje, mas, daqui a algum tempo, que pareçam risíveis de tão antiquadas para novas gerações.”

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