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Em ‘Paris, Capital da Modernidade’, David Harvey cria obra de referência

Coalização entre Estado, capital financeiro e especulação imobiliária deu origem ao que se chama de modernidade

Foto do author Antonio Gonçalves Filho
Por Antonio Gonçalves Filho
Atualização:

O geógrafo e professor de antropologia britânico David Harvey é conhecido por seu curso sobre O Capital, de Marx, que já teve mais de 700 mil acessos desde 2008, no site da Cuny. Já esteve no Brasil e lançou vários livros por aqui, entre eles três volumes de Para Entender O Capital, publicados pela Boitempo Editorial, que coloca agora no mercado uma obra de referência do autor, Paris, Capital da Modernidade. Publicado lá fora em 2003, o livro é importante não só por combater um dos grandes mitos da modernidade – o de que ela constitui uma ruptura radical com o passado – como por promover uma nova leitura da história de um dos períodos mais turbulentos da França, o da ascensão do urbanista barão Georges-Eugène Haussmann, o homem responsável pela reforma urbana de Paris entre 1853 e 1870, que, segundo Harvey, “coagiu a cidade a assumir a modernidade”.

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Cinco anos antes de Haussmann dar o pontapé inicial para derrubar as casas velhas de Paris e acabar com ruas estreitas, por ordem do imperador Napoleão III, sobrinho de Bonaparte, a França vivia o caos do desemprego, da miséria e da fome. Desnecessário dizer que a capital virou o ponto de convergência de todos os miseráveis – e também, o centro de manifestações de rua e levantes conspiratórios contra a monarquia. Em 1848, a macabra visão de uma carroça com corpos de manifestantes, conduzida à luz de tochas por Paris, inspirou os arautos da modernidade literária – Flaubert, em particular – a promover uma renovação nas letras que viria a acompanhar – voluntariamente ou não – a monumentalidade arquitetônica anunciada por Haussmann.

Havia, segundo Harvey, “uma contradição na percepção de modernidade” desses arautos literários, em especial o poeta Charles Baudelaire (1821-1867), flâneur que amava perambular pelas ruas de Paris e chocar burgueses escandalizáveis. A exemplo de Flaubert, Baudelaire talvez não tenha percebido, em sua ânsia de derrubar tabus e impor a modernidade – tanto na literatura como nas artes visuais – que a perda da tradição, como diz Harvey, “arranca as âncoras do nosso entendimento e nos deixa à deriva, impotentes”. Com Baudelaire, aconteceu algo mais trágico: uma atrofia física em função de seu desentendimento com o presente. Por viver no futuro, desprezou o passado e morreu afásico, hemiplégico e sifilítico, sonhando com um mundo em que a poesia simbolista iria derrotar a realidade.

Marx, ao menos, percebeu que os acontecimentos de Paris de 1848-1851 foram uma espécie de manifestação epifânica, embora Harvey considere que ele tenha sido “afetado pelo romantismo e pelo utopismo socialista em seus primeiros anos” (Marx, reconhece o autor, foi muito influenciado por Balzac, como Flaubert e Baudelaire, de resto). Em seu livro, Harvey traça uma correspondência analógica entre os escritos de Balzac e as ilustrações de Daumier, de fato o grande comentarista da vida cotidiana parisiense, resgatado do limbo por historiadores modernos que, espelhados no exemplo de Baudelaire, reconheceram nele mais que um caricaturista.

Se alguém estiver disposto a estudar a transformação arquitetônica e urbanística sob o tacão de Haussmann, as caricaturas de Daumier fornecem um material admirável, apenas rivalizado pelo projeto inacabado de Walter Benjamin, Passagens. Harvey, ao contrário de Benjamin, não se importa tanto com a fantasmagoria, com o espetáculo das passagens de Paris. Ele está interessado em como Paris se tornou um lugar central para o advento da modernidade, contrapondo a vida provinciana à correria diária na época das grandes reformas de Haussmann.

Obras públicas de grande escala sempre fascinaram políticos, de Napoleão III aos líderes atuais. Harvey não comete o equívoco de contar a história da transformação de Paris no Segundo Império segundo uma narrativa que privilegia o macro e despreza detalhes. Ele mostra como a coalização entre Estado, capital financeiro e especulação imobiliária deu origem ao que se chama de modernidade.

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