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Em livro ‘A Ordem do Dia’, Éric Vuillard mostra a intimidade de empresários com o nazismo

Obra se concentra nos bastidores do apoio dado pelos maiores industriais da Alemanha da época – como Siemens, Shell, Allianz, BMW e Bayer – a Hitler

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Por Ubiratan Brasil
Atualização:

O escritor francês Éric Vuillard acredita que a 2.ª Guerra Mundial será ainda, durante anos, uma fonte de investigação sobre a natureza humana. “Junto com o Holocausto, que é uma das suas consequências, o conflito é o evento central do século passado e servirá, por muito tempo, para explicar as reações dos homens, desde suas relações diplomáticas até traições, hipocrisia”, afirma ele que, partindo desse raciocínio, escreveu A Ordem do Dia, que ganha agora versão nacional pela Tusquets, selo da editora Planeta.

Cena de 'O Triunfo da Vontade', de Leni Riefenstahl (1935) Foto: The Image Works

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Para reforçar seu argumento, o livro ganhou o Goncourt de 2017, o mais importante prêmio literário francês e também um dos mais destacados do mundo. Trata-se de uma obra pequena no formato, apenas 144 páginas, mas de grande fôlego. Ali, Vuillard se concentra nos bastidores de dois momentos fundamentais pré-guerra: o apoio dado pelos maiores industriais da Alemanha da época – como Siemens, Shell, Allianz, BMW e Bayer – a Hitler, em 1933, e a anexação da Áustria ao Reich, em 1938, antecipando a invasão da Polônia, no ano seguinte, o que é considerado historicamente como o fato que detonou a guerra.

A Ordem do Dia começa com uma reunião secreta de vital importância”, conta Vuillard ao Estado, em entrevista realizada por e-mail. “Essa reunião ocorreu realmente, em 20 de fevereiro de 1933, quando os nazistas chegavam ao poder. Vinte e quatro dos maiores industriais da Alemanha reuniram-se então com Hermann Goering (comandante da força aérea alemã) e Adolf Hitler. Mas não foi uma reunião de confronto, como se poderia esperar – ao contrário, foi tranquila e cordial. Discutiu-se o financiamento da próxima campanha eleitoral, que por sinal seria a última, pois permitiu a Hitler destruir a república de Weimar.”

Ditador alemão em Nurenberg, no início do regime nazista. Hoffmann, fotógrafo pessoal de Hitler e confidente, foi incumbido de coreografar a propaganda do regime e apresentar as gloriosas imagens a um abaladopúblico alemão. Hoffmann tirou mais de 2 milhões de fotos de seu chefe Foto: Heinrich Hoffmann

O argumento do Führer era de que o país clamava por estabilidade econômica e de que o socialismo nacional seria vantajoso para os negócios de todos. O autor mostra que, em troca das contribuições, as grandes corporações lucraram com o trabalho escravo judeu. A generosa oferta também fortaleceu planos mais ambiciosos, como o de anexar a Áustria (país de nascimento de Hitler), em maio de 1938, criando assim o Terceiro Reich. 

Com uma escrita sem maneirismo, Éric Vuillard relata ainda a ineficiência de outras potências europeias, notadamente a França e a Inglaterra, em tentar conter o avanço alemão, permitindo que a Europa fizesse um voo cego em direção ao abismo. “Às vezes, as maiores catástrofes anunciam sua chegada em pequenos passos”, escreve.

Entrevista

O escritor francês Eric Vuillard Foto: Phillippe Wojazer/Reuters

Como determinar os limites de um acordo com um ditador? 

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Em meu livro, eu quis mostrar como ocorreu o compromisso com o nazismo e o encadeamento dos fatos que se seguiram até as últimas consequências. Cabe ao leitor tirar suas conclusões. Mas acho que, frente a uma ditadura, qualquer resposta séria tem de ser coletiva. 

A história é sempre uma outra maneira de se olhar o presente, e seu livro reflete explicitamente o presente. Que episódio em especial fez deslanchar seu trabalho? 

Num capítulo de meu livro, conto uma visita que lorde Halifax (secretário de Relações Exteriores britânico durante a guerra) fez a Hitler em 1937. Ao descer do carro no Berghof, um refúgio de Hitler nos Alpes Bávaros, Halifax, enquanto seus olhos ainda se habituavam ao sol, reparou na má qualidade dos sapatos de alguém que veio recebê-lo no alpendre. Ele ia entregar negligentemente seu sobretudo à pessoa quando uma voz o advertiu: “É o führer!”. Levantando os olhos, ele reconheceu Hitler. “Eu o havia tomado por um empregado doméstico”, zombou ele em suas memórias. O que me choca nessa cena não é apenas seu aspecto grotesco, quase cômico, mas o fato de que, além de se enganar canhestramente, lorde Halifax conta isso com evidente satisfação. Entretanto, tomar um personagem tão perigoso por um simples criado revela uma cegueira diplomática assustadora. Quando, no ano passado, Mark Zuckerberg, dono do Facebook, foi convocado pelo Congresso, The New York Times informou que ele se cercou de consultores para tomar “aulas intensivas de humildade e sedução”. Existe aí não apenas uma história, mas antes de tudo uma concepção de mundo: as pessoas do povo se contentam com a imagem da humildade. É claro que o poder está sempre acompanhado de um certo componente de provocação. Quanto mais feroz é a desigualdade, mais aqueles que detêm o poder incorrem em deslizes e falta de tato, a ponto de seu discurso estar irrefutavelmente carregado de desprezo. Foi esse desprezo e essa cegueira que me chamaram a atenção. 

Como a literatura pode ajudar a entender melhor a história? 

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Eu me recuso a aceitar qualquer antagonismo entre literatura e história. Parece-me que, para entender melhor certas coisas, precisamos da narrativa, do contexto. Se os números frios, o exame dos fatos, a distância e a análise produzem novos e indispensáveis conhecimentos, encarnar os personagens permite tocar uma realidade mais viva. Além disso, situar os eventos no tempo obriga a uma montagem, a uma tomada de opinião que permite compreender as coisas de outro modo. É o efeito “candelabros de Jean Valjean”. Em Os Miseráveis, de Victor Hugo, no momento em que os gendarmes levam Jean Valjean à presença do bispo do qual ele havia roubado a prataria, o bispo diz que Jean Valjean não lhe roubou nada, e até o obriga a ficar com os candelabros, dizendo que os dera a ele. Jean Valjean fica siderado. Aquele ato de generosidade ia contra tudo que ele conhecera na vida. Roubara o bispo e eis que este finge que lhe havia dado o produto do roubo: os candelabros de prata. Essa louca generosidade contagia o leitor. Ele é embalado pela história e acaba aceitando ele mesmo os candelabros. 

O jornalismo narrativo americano apostou muito na ficção e se inspirou no arco narrativo clássico. O senhor acredita que haverá sempre lugar para uma narrativa conscientemente literária? Essa narrativa estará sujeita a desaparecer ou se modificar em se tratando de jornalismo? 

De Jean de Léry e da narrativa de suas viagens ao Brasil que prefiguram a etnologia, às reportagens de Ryszard Kapuscinski, a investigação, e o tipo de texto que ela pede, é a expressão mais direta dessa exigência realista. Mas ficção e investigação não são posições antagônicas. Tudo depende do momento em que se escreve e das circunstâncias nas quais o livro se desenvolve. Assim, a obra de Machado de Assis está estreitamente ligada ao contexto político. Nascido em uma família pobre, mestiço, o autor é muito sensível às desigualdades. Em Memórias Póstumas de Brás Cubas, o narrador conta que, quando criança, usava um jovem escravo como montaria. Essa confissão é seguramente fictícia, mas, quando Machado de Assis publicou seu livro, a escravidão ainda existia oficialmente na sociedade brasileira. O que ele escreveu como ficção não poderia ter sido escrito como de pesquisa. É apenas o tom satírico do livro que garante seu conteúdo. Essa nova ironia de Machado de Assis introduz uma forma de verdade inédita na literatura brasileira. Não são tanto os fatos, as descrições ou a crítica feroz às condições de vida da época que fazem desse grande romance uma obra realista, mas seu tom. O que os críticos tomam por fantasia, ficção desenfreada e sarcasmo é de fato a expressão mais acabada de realismo num contexto de profunda desigualdade. 

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O senhor está mais interessado nas diferenças entre passado e presente ou nas semelhanças entre diferentes épocas?

Na realidade, não é o passado que nos ilumina, é o presente que renova nossa visão da história. São os eventos contemporâneos que nos obrigam a rever a ideia que fazíamos de tal e tal período, de tal e tal problema. É esse passado revisto em função da urgência e verdade do presente que nos ensina algo. 

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O senhor se vê como um escritor político ou sente que os escritores são seres inevitavelmente políticos?

Se tomarmos rapidamente alguns nomes que marcaram a história literária francesa, veremos que cada um representa uma subjetividade particular, com suas próprias preocupações, mas ao mesmo tempo representando uma etapa da vida coletiva. Em Victor Hugo, está luta da república contra o império; em Émile Zola, estão o caso Dreyfus e as grandes greves de mineiros; em André Malraux, está a guerra da Espanha; em Jean-Paul Sartre o Maio de 1968 e a descolonização. A literatura é um empreendimento solitário que encampa as preocupações coletivas. 

David Slone Wilson, em seu ensaio intitulado Construção Social Evolutiva, nota que nos construímos e reconstruímos para responder a situações encontradas visando ao o futuro. O que o senhor pensa disso? 

Me parece que uma concepção democrática de existência deixa grande espaço para o imprevisto, a esperança, o intempestivo. Os eventos futuros que definirão a vida social são por definição inéditos. Pode-se fazer algumas previsões econômicas, com suas margens de erro, mas não se pode prever a Revolução Francesa. Uma concepção democrática de vida implica decisões emancipadas, ações não subordinadas. A dinâmica mais admirável da vida social tem uma certa indocilidade coletiva. O próprio voto é em essência imprevisível, o que o distingue radicalmente de pesquisa de opinião. O voto é uma escolha, e em última análise, ele decide a situação que precede. 

O Mal é um aliado da literatura? 

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Ao me aproximar irreverentemente de personagens do mundo econômico e político e olhar a caspa em seus ombros, as manchas em seus lenços, os resíduos de comida em seus bigodes, não é o Mal que eu procuro. Não acredito que o segredo da vida humana resida num erro de nascença. O que tento simplesmente é perturbar um pouco a falsa grandeza de que as elites se revestem, o lado solene do qual o poder se ornamenta. 

O senhor acredita que a literatura dá conta da realidade atual, complexa e acelerada? 

Em O Espírito das Leis, Montesquieu afirma que o poder tem uma tendência natural a aumentar suas prerrogativas e abusar delas. Ele faz isso até encontrar um limite. A ideia vale para qualquer época e qualquer lugar. Desde a Revolução Industrial, o poder que não para de crescer e de ficar cada vez mais autônomo é o poder econômico, o poder financeiro. Seu império hoje é universal. E, a fim de ampliar suas extravagantes prerrogativas, ele adquire de bom grado uma dimensão autoritária. Por isso, se a literatura tem por vocação falar do mundo real, do mundo em que vivemos, contar como o poder econômico se acomodou às ditaduras não me parece algo inútil.

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