Em 'A Rainha da Neve', Michael Cunningham cria personagens em busca da transcendência

Romance descreve a luta pelo chamado conforto espiritual

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Por Ubiratan Brasil
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Central Park. Lá se inicia a história Foto: New York Times

Barrett é gay, o que não chega a ser relevante. Vivemos em uma era de ficção “pós-gay”? Acho que sim, e isso é uma ótima notícia. Houve um período na literatura contemporânea - provavelmente necessário - em que os romances “gays” foram exatamente isso: eram situados em universos gays, e se concentravam quase exclusivamente em personagens gays. Gosto de pensar que já passamos dessa fase, como autores e leitores. Principalmente porque não acredito que a sexualidade de alguém seja sua qualidade mais importante. É claro que a sexualidade do indivíduo é importante, sem dúvida, mas há questões de caráter que vão muito mais fundo. E, sendo gay, sinto-me assim, simplesmente do ponto de vista pessoal, e naturalmente isso se reflete naquilo que escrevo. Minha sexualidade não é a primeira coisa que alguém deveria saber a meu respeito. E, sendo gay, sei que as diferenças são relativamente modestas. A batalha em andamento pela igualdade de direitos para gays tem seus efeitos, é claro. Mas isso decorre de um sistema político e cultural, não está na alma. Além disso, eu não gostaria de escrever um romance inteiramente a respeito de personagens gays, nem que tenha na homossexualidade seu principal tema. Há muitas pessoas no mundo que por acaso não são gays, e quero escrever sobre elas também.Quais desafios busca enfrentar? E quais os que evita? Gosto de pensar que não evito desafios. Se escrever ficção não fosse desafiador, não me interessaria em fazê-lo. Como apontou na primeira pergunta, cada romance toma forma de maneira diferente, e nunca sei, de um livro para o outro, qual será o tema ou a população que vai me interessar a seguir. As coisas simplesmente… acontecem. O único princípio que me orienta é não escrever o mesmo romance duas vezes, com pequenas alterações. Por exemplo, meu próximo livro, que será publicado nos EUA em novembro, é uma coletânea de contos de fadas. E aquele que acabo de começar… bem, digamos apenas que é bastante diferente de todos os meus outros livros.Gore Vidal costumava dizer que a inveja é o sentimento central na vida americana. E essa inveja é também o combustível da produção literária, no sentido que os autores sempre esperam escrever melhor que os demais. O que acha disso? Gore Vidal era um homem sábio. Sim, a inveja desempenha um grande papel na vida americana, mas não estou convencido que isso seja exclusividade dos EUA. Não somos todos nós, seres humanos, sujeitos a mais inveja do que gostaríamos de admitir? Dito isso, não acho que concordo com a ideia segundo a qual a inveja alimentaria a produção literária. É claro que ela desempenha um papel, mas há também o desejo de contar uma boa história, compartilhar o que o autor sabe com os leitores, tentar e fazer justiça ao mundo e às pessoas. Inveja? Claro. Ambição? Sem dúvida. Mas não sou tão cínico quando Vidal. Acredito que escrever romances também envolve, no seu centro, uma certa generosidade, um verdadeiro desejo de entregar. Pode até me chamar de sentimental…

A RAINHA DA NEVEAutor: Michael CunninghamTradução: Regina LyraEditora: Bertrand Brasil (252 págs., R$ 35)

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