Em 'A Cidade Dorme', Luiz Ruffato observa impasses da classe média

Em novo livro, escritor reúne experimentação e realismo para contar histórias da classe média do País

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Luiz Ruffato diz que A Cidade Dorme, sua nova obra, com lançamento nesta quinta-feira, 1.º, em São Paulo, é o seu primeiro livro de contos. Mas os gêneros literários nunca foram uma questão para o autor do inclassificável Inferno Provisório – a pentalogia dos anos 2000, um panorama literário sem igual da classe trabalhadora brasileira, reeditado em 2016 pela Companhia das Letras. 

Nos contos de A Cidade Dorme, o escritor mineiro radicado em São Paulo retoma seus temas preferidos (as relações familiares e sociais do brasileiro de classe média e baixa) e a escrita inventiva que lhe consagrou como um dos principais prosadores brasileiros do século 21. O livro será lançado nesta quinta-feira, 1.º, às 18 horas, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional, em SP.

Luiz Ruffato apresenta seu 'primeiro' livro de contos: 'A Cidade Dorme' Foto: Hélvio Romero/Estadão

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Escritos e publicados em revistas, sites e fora do Brasil nos últimos 15 anos, os contos fecham um ciclo para o escritor, que agora se dedica a um novo romance, numa pegada próxima à do Inferno Provisório

Esse próximo projeto será o segundo romance inédito após o marcante discurso na abertura da Feira de Frankfurt de 2013, com o Brasil como país convidado. No maior evento editorial do mundo, Ruffato criticou duramente a desigualdade na sociedade brasileira.

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Em A Cidade Dorme, Ruffato traz trabalhadores urbanos e do interior, indo e vindo num movimento migratório interno que muitas vezes acaba sem sentido, segundo o autor e os próprios personagens. No livro, é possível perceber o deslocamento de personagens voltando de São Paulo, onde seus sonhos de uma vida melhor acabaram não se concretizando.

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“Mudou a dinâmica nesse sentido, a cidade de São Paulo parou de crescer desde o último censo”, diz o autor, durante uma visita da reportagem ao seu apartamento, na zona oeste da capital. “Qual é o atrativo de São Paulo hoje? O grande atrativo era a indústria. Isso não existe mais. Agora, muita gente iludida sonha em se aposentar e ir morar no interior.” 

Esse movimento experimentado por alguns de seus personagens, porém, também é instituído de pessimismo. “É um desastre completo. Esse interior ideal não existe.” Espécie de especialista no êxodo do trabalhador brasileiro para as grandes cidades, o autor conclui: “A busca vira um impasse”.

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Política

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Consagrado por seus escritos que misturam experimentação ousada de linguagem com o retrato panorâmico da classe trabalhadora brasileira, Ruffato está decepcionado com o rumo político do Brasil. “É muito difícil falar sobre política no Brasil porque as pessoas não querem falar. Estão muito polarizadas”, lamenta. “O sistema político brasileiro é tão problemático que, neste ano, ninguém tem candidato.”

No seu novo livro, o escritor passeia por temas como a família, os deslocamentos por entre o Brasil, o futebol na vida das pessoas, a ditadura militar e a vida contemporânea em São Paulo. São textos curtos que retomam assuntos recorrentes no seu projeto ficcional: o desenraizamento e inadequação da classe média trabalhadora na sociedade brasileira.

Ruffato aceita de bom grado a alcunha de “escritor político”, mas é verdade que, em sua ficção, não aparecem políticos no sentido estrito do termo. “Sempre que a literatura tem alguma mensagem a trazer, ou um compromisso com algo que não seja a própria literatura, ela já não é literatura, é outra coisa”, reflete.

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“O Paulo Freire dizia: na vida, temos que ser radicais, mas não panfletários. Essa radicalidade, para mim, está em trazer aspectos da sociedade que não estão presentes na literatura brasileira. Isso é uma visão de mundo política, mas não é panfletária nem engajada.” Ao relembrar autores latino-americanos que experimentaram colocar políticos e diplomatas em romances (Alejo Carpentier, Augusto Roa Bastos, Miguel Ángel Astúrias), Ruffato lamenta a face pouco permeável de governantes em geral. “Qual a diferença entre os nossos políticos, do ponto de vista da complexidade? Nenhuma.”

Aos 57 anos, ele observa com cuidado o destino próximo do Brasil. “A situação de intervenção no Rio é injustificável. O Exército na rua tem duas possibilidades: enfrentar (a criminalidade), o que seria uma complicação, porque o Exército não tem esse papel; ou ficar refém da situação e se desmoralizar, o que é pior.”

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Outro elemento muito presente nos contos do livro é o futebol, e sua relação com a sociedade – e a política – brasileira. “Se alguém quiser representar o universo da realidade brasileira, vai esbarrar com o futebol. Ele tem que estar lá. Outra ausência na literatura brasileira, que é curiosíssima, é a questão do pentecostalismo. Representa 30% da população brasileira. Ignorar isso é estranho. Tenho tentado colocar nos livros, isso está muito presente nas minhas preocupações como escritor.”

O conto que fecha o livro, A Alegria, publicado pela primeira vez na sua versão integral (35 páginas), se distancia das outras histórias ao operar num registro diferente do “realismo”.

Nele, o personagem viaja no tempo e no espaço de maneira anárquica, quase onírica – embora o escritor afirme que não se lembra dos próprios sonhos. “No Inferno Provisório, há histórias que fogem do realismo mais óbvio. Não sei se vou voltar a isso algum dia. Esse conto abre chaves para outras histórias, mas não é algo que eu quero fazer...”

Geração 90

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Em 2018, completam-se 15 anos do lançamento da segunda parte das antologias Geração 90, organizadas por Nelson de Oliveira. Na edição de janeiro do jornal literário Cândido, o crítico Luis Augusto Fischer destacou a carreira internacional de Luiz Ruffato, “notável exceção (...), que parece ter mais carreira fora do Brasil do que dentro dele, com suas 15 traduções (para alemão, francês, espanhol e italiano) e, não menos, dois polpudos fortíssimos prêmios internacionais, o Casa de Las Américas, em 2013, e o Herman Hesse, em 2016.”

Para o escritor, a literatura brasileira não existe fora do Brasil. “Não é porque ela é ruim, é porque o Brasil não tem importância no contexto internacional.”

Sua carreira internacional tem, segundo o próprio, pouco a ver com esforços coletivos ou mesmo institucionais. “Muito da invisibilidade que temos lá fora é responsabilidade do Estado. Por mais que muitos achem que a cultura é desnecessária, não é assim. Todos os países civilizados têm um instituto para divulgar sua cultura no exterior. Nós temos lances episódicos.”

Quanto à chamada Geração 90, Ruffato lembra que o grupo abriu portas ao ter algum êxito em se profissionalizar. “Dizíamos: ‘Somos escritores, queremos ganhar dinheiro com literatura’. No final do século 19, já existiam escritores que pensavam assim, mas essa postura de encarar o mercado, não ter preconceito contra vender livro, foi uma coisa nova, bacana.”

'Efeito Ruffato' pós-Frankfurt 

Em 2013, na Feira de Frankfurt, Ruffato teceu duras críticas à desigualdade no Brasil. O discurso dividiu impressões e gerou o que agora é conhecido como “Efeito Ruffato”: o número de convites oficiais diminuiu na vida do escritor, e ele diz ter sido alvo de boicote de embaixadas brasileiras no exterior. “Não sou uma pessoa importante para que ainda exista esse tipo de bobagem”, diz.

A CIDADE DORME

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Autor: Luiz Ruffato

Ed.: Companhia das Letras (128 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 digital)

Lançamento: 5ª (1º, 18h), na Livraria Cultura do Conjunto Nacional

Trecho

“O delegado separou três grupos. Ao mais numeroso, uns seis adolescentes aterrorizados, recomendou que fossem fichados por atentado contra a moral e os bons costumes e perturbação da ordem pública, que tivessem os cabelos rapados à máquina zero e que permanecessem retidos até que os pais, intimados, comparecessem à delegacia. E, perfilando-nos, encarou um a um, gritando, furioso, Vocês, corja de safados, veados e maconheiros, são a desonra do Brasil! Depois, mirando Cabeça, encostado na parede oposta, ao lado de um rapaz, pisaduras diversas, rosto cravejado de espinhas, olhar enfezado, falou, condoído, José Francisco, José Francisco, seu pai é um homem honesto, trabalhador, chefe de família exemplar... Como você pode fazer isso com ele, com sua mãe... (...) Em fila, saíram todos empurrados para os dois camburões que aguardavam na rua, envolvidos na curiosidade de uns gatos-pingados pelo desfecho daquele cerco. E, só então, se ocupou de mim e de Marcelo.”

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