Edições trazem ao Brasil olhares sobre a literatura argentina contemporânea

Antologia e coleção de crítica publicadas no País lançam luz sobre aspectos mais recentes da produção literária da Argentina

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Por Guilherme Sobota
Atualização:

Bom, não deu para eles na final da Copa do Mundo – mas não é novidade que a qualidade dos argentinos dentro do campo é alta, e equivalente à produção no campo das artes, especialmente na literatura. A lista impressiona: Jorge Luis Borges, Julio Cortázar, Adolfo Bioy Casares, Ricardo Piglia, Roberto Arlt, Ernesto Sábato... e não acaba. Agora, edições recentes lançadas no Brasil pretendem jogar luz sobre outro tempo da literatura argentina: o contemporâneo.

Buenos Aires. Fuga para a cidade é elemento recorrente nos contos Foto: Enrique Limbrunner

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Contos em Trânsito – Antologia da Narrativa Argentina foi há pouco publicado por aqui pela editora Alfaguara, ao mesmo tempo em que saiu no país vizinho uma antologia de brasileiros.

A lista do livro editado no Brasil traz autores importantes que começaram a publicar ainda no século 20, porém não tão difundidos por aqui, como Fogwill (1941-2010), Hebe Urhart (1936), Liliana Heker (1943) e Héctor Tizón (1929-2012). Entre os mais jovens, estão Manuel Soriano (1977) e Eduardo Sacheri (1967), autor do romance La Pregunta de Sus Ojos, que inspirou o filme O Segredo dos Seus Olhos, de 2009.

No time de tradutores para o português, entre outros, estão Mariana Sanchez, Maria Alzira Brum Lemos e Tamara Sender.

O livro é uma reunião de contos curtos que quase sempre se passam no ambiente urbano de Buenos Aires, mas ir além disso para definir uma linha comum entre eles é arriscado – todo critério de antologia é discutível. 

A escritora, tradutora e professora da Universidade Federal de São Paulo Paloma Vidal pensa que um traço característico da literatura argentina contemporânea é a proximidade com o ensaio. “Percebo que alguns textos da produção atual compartilham uma concepção de literatura que discute ideias, que não teme a teorização, que tira proveito da citação, que produz séries teóricas em torno de problemas a serem pensados. Isso é muito desafiador”, diz.

Paloma, que nasceu em Buenos Aires e se mudou para o Brasil ainda criança, também acredita que a sombra da imensa tradição já não assusta tanto os novos escritores. “Os autores contemporâneos se relacionam mais com escritores de uma geração mais recente, como César Aira, Rodolfo Fogwill ou Ricardo Piglia, que já começam a ser difundidos no Brasil.”

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O escritor argentino Eduardo Sacheri, que respondeu a algumas perguntas do Estado por e-mail, concorda. “Somos leitores dos grandes mestres argentinos. Leitores e não seguidores, porque não se veem tendências estéticas que busquem – conscientemente – seguir suas linhas estilísticas”, afirma.

Quanto às principais marcas da contemporaneidade no país, Sacheri exalta a pluralidade. “Há numerosas vertentes distintas. Desde uma literatura mais atenta à forma e ao discurso a outra que pretende equilibrar esse cuidado formal com o desenvolvimento de tramas e personagens em um estilo mais clássico”, analisa. O escritor também se mostra otimista com o mercado editorial portenho, que, segundo ele, é muito diverso, com a convivência de grandes casas editoriais e de uma multidão de pequenos editores. “Isso é um sintoma de saúde e vitalidade da literatura argentina.”

O intercâmbio com a cultura brasileira ainda é, porém, escasso. “Na América do Sul de fala hispânica, existe um contato, não tão fluido, mas existe. Com o Brasil, esses contatos são, segundo entendo, quase inexistentes. Creio que a barreira idiomática é ainda muito forte. Acredito que o caminho da tradução é o caminho mais urgente e necessário”, comenta Sacheri, ao se referir ao programa Sur, promovido pelo Ministério das Relações Exteriores da Argentina, de incentivo a traduções em outros países.

Paloma Vidal usa o mesmo exemplo dos programas para manifestar uma posição mais otimista. Para ela, a situação é favorável ao intercâmbio. “Há algumas iniciativas, como a coleção Otra Língua, da editora Rocco, e algumas outras editoras, como a Iluminuras e a Cosac Naify, têm publicado sistematicamente autores hispano-americanos”, exemplifica a professora, que há dez anos mantém, com amigos, o projeto Grumo, voltado para o intercâmbio cultural entre os dois países.

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Entrecríticas. Voltada à difusão de um tipo específico de pensamento (relacionado a conceitos como “literatura fora de si” e “literatura pós-autônoma), a coleção Entrecríticas, lançada recentemente pela editora Rocco, oferece uma abertura em direção ao pensamento latino-americano – e argentino.

Não por coincidência, os dois primeiros lançamentos da coleção são de autoras portenhas: Frutos Estranhos, de Florencia Garramuño, e Poesia e Escolhas Afetivas, de Luciana di Leone. O primeiro, um ensaio sobre a especificidade da arte, que parte de uma instalação de Nuno Ramos. O segundo, uma interessante análise sobre o afeto na produção poética contemporânea de Brasil e Argentina. 

“A ideia fundamental de Poesia e Escolhas Afetivas é que o critério afetivo não é circunstancial, mas um modo e uma perspectiva ética, estética e política de fazer literatura ou qualquer outra coisa”, diz Paloma Vidal, curadora da coleção. 

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Entre os nomes previstos para publicar estudos pela Entrecríticas estão Natalia Brizuela, Diana Klinger, Ítalo Moriconi, Flora Süssekind, Gonzalo Aguilar e Mario Cámara.

ENTREVISTAS

Paloma Vidal, escritora e acadêmica

‘A literatura é mais relevante na Argentina’

Paloma Vidal Foto: Renato Parada/Divulgação

Qual é a importância que se dá à literatura na Argentina? 

Acho que a literatura continua ocupando um papel bastante mais relevante na Argentina do que no Brasil, ainda que lá também não seja de consumo massivo. A Argentina continua sendo um país bastante letrado, com um número alto de universitários. Também possui um número maior de cadernos e revistas culturais e literárias, em papel ou digitais, e de editoras independentes. O mercado literário é certamente bem mais variado e menos monopolizado do que o brasileiro. 

A barreira idiomática ainda é relevante no intercâmbio (ou na falta dele) entre as literaturas brasileira e argentina? 

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A situação me parece bastante favorável ao intercâmbio. No âmbito de iniciativas governamentais, os dois países possuem programas de incentivo à tradução. Do lado de lá, talvez pelo perfil mais letrado, ou porque a cultura brasileira desperte mais interesse de maneira geral entre os argentinos do que o contrário, me parece que há mais iniciativas. / G.S.

Eduardo Sacheri, escritor argentino

‘A tradição de leitura retrocedeu’

Eduardo Sacheri Foto: Patricia Asses/Divulgação

A literatura ocupa que lugar no cotidiano dos argentinos?

Creio que temos problemas parecidos nos dois países. Na Argentina tivemos, no século 20, uma cultura de leitura muito sólida. Porém, nas últimas décadas, essa tradição retrocedeu, junto com um sistema educativo com problemas de financiamento e de qualidade cada dia mais evidentes.

Seu conto na antologia (Ninguém Dava Nada por Achával), faz parte de uma porção da sua obra que fala de futebol. Para você, o que há de especial com essa ponte?

Acredito que enquanto jogo, e jogo vinculado a certas marcas de identidade muito profundas na vida cotidiana de sociedades como as nossas, o futebol é uma boa porta de entrada, um bom ponto de acesso a questões mais profundas. Essas questões definitivas do ser humano que a literatura está sempre tentando envolver. Se a literatura fica na simples anedota, na superfície do futebol, perde uma grande oportunidade. O futebol serve à literatura, entendo, como ponte para outros lugares. / G.S.

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Leia trecho do conto Ninguém Dava Nada por Achával, de Eduardo Sacheri, publicado na antologia Contos em Trânsito:

"Quando o jogo começou, partimos como selvagens na direção do gol deles. Tolices que cometemos aos treze anos, fazer o quê? Eles nos esperaram, nos seguraram, e aos dez minutos lançaram um contra-ataque que parecia o desembarque na Normandia. Quando eu os vi disparando rumo ao nosso gol, com a bola dominada, quatro caras contra Pipino, que era o único garoto de juízo que ficou na sobra, eu disse: 'Perdemos'. Mas calma, eles também tinham treze anos e estavam empenhados em fazer o gol de suas vidas. Foi aí que o tampinha Urruti, que jogava com a sete, deu uma de fominha e, em vez de tocar para o meio, arriscou um drible em Pipino. A bola veio longa, mas Achával ficou cravado na linha como se fosse um goleiro de totó. A verdade é que, visto assim, alto, rijo, com as pernas juntas, só lhe faltava a haste de aço na altura dos ombros. Quando o tampinha chutou na direção dele, tive um lampejo de esperança. A bola saiu frouxa, não muito alta. Fácil para qualquer um que tivesse a mínima noção de como se joga esse esporte. Mas se via que não era o caso de Achával. Porque em vez de simplesmente abrir os braços e encaixar a pelota ele se atirou para frente, como se quisesse interromper o percurso da bola. Coitado, imagino que tenha visto algo parecido numa partida de televisão e achava que assim o levaríamos a sério. O pior foi que ele calculou tão terrivelmente mal a trajetória da bola que, em vez de terminar em seus braços, ela bateu no seu ombro esquerdo e entrou quicando no gol. [...]

Quando os da 1ª turma viram o trouxa que tínhamos no gol, fizeram a festa. [...]

Perder de 7 a 3 em nosso primeiro desafio foi traumático para nosso frágeis corações adolescentes. Mas pelo menos tiramos duas conclusões importantes: Cachito renunciou a suas ambições de camisa oito driblador e se conformou em passar o resto do colegial no gol. E nunca mais nessa maldita vida voltamos a convidar Achával para jogar os desafios. [...]

Daí que a estreia e a despedida de Achával foram em maio de 1981. E assim as coisas teriam permanecido se o babaca do Pipino não tivesse mais boca que cérebro." (Tradução de Tamara Sender)

Leia trecho de Poesia e Escolhas Afetivas, de Luciana di Leone, publicado pela Rocco:

"Estabelece-se, a partir daí, uma frente que justamente terá como grandes inimigos o fechamento, a categorização, a procura de etiquetas e o discurso da morte da da poesia, indo contra qualquer tipo de menção a uma pressuposta esterilidade da poesia atual. Insiste-se, também, na explicitação da procura de um espaço 'móvel, 'sem limites', 'sem hierarquias', 'inconcluso', de 'trânsito', de 'permanente construção coletiva', isto é, sem um único autor, senão 'demasiados'. Afastando-se claramente tanto da antologia de autor, quando da antologia-testemunho, Mendez levanta conceitos ou ideias que fazem parte de um paradigma muito caro a um grande setor das estéticas contemporâneas e, ao mesmo tempo, que respondem a uma solicitação mais ou menos explícita da crítica literária e cultural contemporânea: a leitura aberta, e não autoritária".

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CONTOS EM TRÂNSITO – ANTOLOGIA DA NARRATIVA ARGENTINA

Vários autores 

Editora: Alfaguara (272 págs., R$39,90)

POESIA E ESCOLHAS AFETIVAS: EDIÇÃO E ESCRITA NA POESIA CONTEMPORÂNEA

Autora: Luciana di Leone 

Editora: Rocco (256 págs., R$29,50)

FRUTOS ESTRANHOS: SOBRE A INESPECIFICIDADE NA ESTÉTICA CONTEMPORÂNEA

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Autora: Florencia Garramuño 

Tradutor: Carlos Nougué 

Editora: Rocco (128 págs., R$24,50)

HISTÓRIA DO DINHEIRO

Autor: Alan Pauls 

Tradutora: Josely Vianna Baptista 

Editora: Cosac Naify (192 págs., R$49,90)

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