Corpo de pedra sem nenhum rosto

Suas crônicas guardam ainda inusitada atualidade

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Por Elias Thomé Saliba
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"Hei de ter sempre a mentalidade de 1903: rua estreita, bonde de burro, casa de pasto, piada do Emílio de Menezes." A frase de Agrippino Grieco sintetiza de forma eloqüente o fim de uma época e o começo de outra no cenário urbano do Rio de Janeiro - a grande vitrine do Brasil na Belle Époque. As ruas estreitas não desapareceram completamente, mas deram lugar às grandes avenidas - o marco foi a inauguração, em 1904, da Avenida Central, o maior símbolo da reforma urbana da cidade. Mais ou menos na mesma época, os bondes com tração animal são rapidamente substituídos pelos bondes elétricos. Ninguém mais usava a antiga designação, dita com leve sotaque lusitano, "casa de pasto", e sim a mais moderna, decalcada do francês ‘restaurant’. As piadas de Emílio de Menezes... bem, estas demoraram um pouco mais para desaparecer, mas logo tornaram-se ‘démodées’, com seus trocadilhos parnasianos.    E no início, o teatro  Um romance pelo avesso  'As casas de Machado não tinham jardim'  Concisão com HQ e cordel  Diário da loucura  Os críticos versus o enigma  O pai da prosa brasileira  Um escritor saudosista   Já as crônicas de Machado de Assis ainda continuam aí, centenárias, porque constituem o registro mais sensível do impacto destas mudanças rápidas, nem sempre perceptíveis nos ritmos cotidianos. Em 1873, ele assim definia a Rua do Ouvidor: "Uma cidade é um corpo de pedra com um rosto. O rosto da cidade fluminense é esta rua, rosto eloqüente que exprime todos os sentimentos e todas as idéias".   Tanto disseram sobre o estilo machadiano, que este já sofre de onerosa super-interpretação. Mas suas crônicas guardam ainda inusitada atualidade. Por que elas nos atraem? Não será porque perdemos a capacidade de lidar com a verdadeira duração das coisas? De qualquer forma, elas nos atraem porque desaceleram: suas digressões vagarosas assemelham-se a caminhadas por becos e ruas nas quais cada detalhe é uma surpresa - e a maior delas vem quando descobrimos a sublime lentidão em meio ao silêncio.   Machado apegou-se à topografia de um Rio de Janeiro que o poeta Paul Claudel chegou a definir como a "única cidade que ainda não conseguiu enxotar de vez a natureza". Cidade onde se comprava um cesto de cajus, uma penca de bananas ou doces secos de abóbora por apenas alguns tostões. Num tempo no qual só se tomava banho de mar a conselho médico. E ainda era possível beber um copo de leite ao pé da vaca, num estábulo que havia na Rua Barata Ribeiro. Ou cochilar num bonde puxado por burros.   A disputa por um lugar já era grande, mas ainda se podia - registrou Machado, com sua piscadela irônica - "recorrer à única atividade onde não havia concorrência de boa vontade, que era a de... plantar batatas". No espaço sublime e no tempo lento das palavras, o cronista parecia antecipar o quanto o excesso de estímulos gerado pelas pressões da vida urbana iria acabar exaurindo ou amortecendo nossos sentidos. E que viver nas cidades implicaria numa compulsória transação fáustica: ganharíamos muitas coisas, mas perderíamos outras, essas irrecuperáveis. Além de imperceptíveis aos nossos sentidos, amortecidos pela rapidez.   Foi assim numa de suas últimas visitas à livraria Garnier, em 1903, ao lado de Manuel Bonfim. Machado parou por momentos à porta, vendo a multidão passar, ansiosa e apressada pela Rua do Ouvidor. Observando aquela infinidade de pessoas indo e vindo sem, ao menos, trocar um olhar ou cumprimento, numa rua tão diferente daquela descrita 30 anos atrás, o escritor sacudiu a cabeça, com tristeza.   "Fe... festa de estalagem...". disse, na sua meia-gagueira.   E, rápido, definindo a própria frase:   "Todos dan... dançam, e ninguém se conhece..."   Igual ao Rio de Janeiro, toda cidade moderna seria ainda como um corpo de pedra. Mas, como advertia o premonitório Machado, um corpo de pedra sem nenhum rosto.   Elias Thomé Saliba é historiador, professor da USP e autor do livro Raízes do Riso: Representação Humorística da História Brasileira

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