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Contos de Nathalie Lourenço oferecem vislumbres do futuro próximo com dilemas tecnológicos

'Todos os medos que a gente tem em relação à tecnologia são de ordem ética', afirma a autora de 'Sabor Idêntico ao Natural' em entrevista ao Estadão

Por André Cáceres
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Talvez o corte mais célebre da história do cinema seja a sequência em que, no filme 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, um primata, após matar seu semelhante usando um osso como arma, lança para o alto o objeto, que se transforma aos olhos do espectador em uma nave espacial. Com essa transição simples, Kubrick resume a história de dezenas de milhares de anos de progresso científico e estabelece a noção de que a tecnologia – de um porrete a uma bomba nuclear – é uma mera extensão do corpo humano. Em seu segundo livro de contos, Sabor Idêntico ao Natural (editora Vacatussa), a escritora Nathalie Lourenço explora essa ideia da tecnologia como ferramenta para tratar de dramas humanos e da relação com os aparelhos que cada vez mais povoam nossas vidas.

Alicia Vikander em cena do filme 'Ex Machina', de Alex Garland; filme também extrapola tecnologias de um futuro próximo para debater dilemas morais Foto: A24/Universal

“Geralmente os contos que eu escrevo têm muito a ver com família ou com relações pessoais, então a tecnologia acaba sendo uma forma de extrapolar a maneira como a gente fala sobre esses assuntos que já me interessavam”, afirma Nathalie em entrevista por videoconferência ao Estadão. “Como qualquer ferramenta desde a pré-história, a tecnologia é o que a gente faz com ela.” Pois na mão de “um doutor lá de Goiás que passou décadas estudando a razão pela qual as galinhas, depois de terem suas cabeças cortadas, ainda continuavam a bater as asas e a correr com sangue em chafariz”, a tecnologia permite vencer a morte no conto O Cadáver que Servia Macarrão. A primeira das sete narrativas breves que compõem o livro trata das consequências das descobertas desse cientista goiano em uma família de quatro irmãos que perdem a mãe. A princípio, a narradora e protagonista não quer permitir que se faça o procedimento – que consiste numa decapitação e na restituição das funções corporais – em sua mãe. “Eu achava bizarro, monstruoso ter um corpo sem cabeça andando por aí em piloto automático”, confessa a personagem antes de ser vencida pelos irmãos. É sintomático que, destituída da fala, dos sentidos, de qualquer experiência minimamente humana, o corpo dos desmortos, como são chamados no conto, continuem a fazer funções mecânicas e a trabalhar como já estavam acostumados a fazer. Bom para os patrões: “Sem enrosco, sem reclamação, sem caraminhola. Isso daí é coisa de quem tem cabeça”. Embora tenha sido contrária à ideia no início, a protagonista logo percebe o ganho financeiro de ter o corpo de sua mãe trabalhando diligentemente, sendo ela, a filha, a beneficiária de seu salário como desmorta. É aí que reside uma tônica dos contos de Nathalie: ninguém é mera vítima da tecnologia; todos são, em maior ou menor grau, cúmplices da própria tragédia. Nesse mesmo registro, o conto Reserva oferece outro vislumbre de um futuro próximo e sombrio à la Black Mirror. Hermes é uma jovem e talentosa promessa do futebol, mas acaba fazendo uma espécie de pacto faustiano boleiro ao aceitar vender seu corpo para Teteu, um veterano famoso que se contundiu. O rapaz basicamente troca a incerteza da carreira de atleta pelo dinheiro fácil e se vê obrigado a se acostumar com o corpo antigo do craque – tarefa que também cabe à sua irmã Daiana, que mora com ele. O conto é narrado em saltos, da perspectiva de um personagem à de outro, num formato que dialoga com o tema da troca de corpos. “A gente sempre teve esses medos. Inventou a clonagem: ‘Vão sair clonando a torto e a direito’. Todos os medos que a gente tem em relação à tecnologia são de ordem ética”, pondera a autora. Esses dilemas estão explícitos também em outros contos do volume, como Ela É Tão Bonita Desligada, que retrata a deterioração da relação de um humano com uma ginoide (a forma feminina de um androide): “Por três ou quatro meses fomos loucos um pelo outro. Eu, de verdade, ela, por causa da opção behavioral número 3”. Para a autora, há sempre uma noção de que o avanço tecnológico nos empurra para uma espécie de simulacro de vida, em que tudo soa falso. “A gente tem a tecnologia tentando se aproximar o máximo possível do humano, mas quando isso acontece é uma coisa perturbadora, da gente não ter certeza do que é real e do que não é.” Tecnologia à parte, uma das narrativas mais instigantes do livro não conta com nenhum aparato especulativo. Em Como Ser Menor, o artifício insólito do conto reside em um elemento bastante concreto: a violência. Com lances que lembram o romance Diário da Guerra do Porco (1969), de Adolfo Bioy Casares, a trama não narra uma guerra entre jovens e velhos – de resto, uma analogia profética para os tempos atuais –, mas um cenário em que pessoas gordas passam a ser vítimas de ataques de ódio. Se no livro de Bioy, como afirma Arévalo, um dos amigos idosos do protagonista, “os rapazes matam por ódio contra os velhos que serão”, no conto de Nathalie a violência é dirigida às figuras que um certo padrão de beleza repudia. A diferença é que – novamente imputando uma parcela de culpa às suas personagens – a narradora Denise não pretende resistir à guerra declarada pelos magros e passa a tentar se adequar, ainda que com dificuldade, ao que a sociedade espera dela. Entre suas influências principais para esses contos, Nathalie cita quatro autores: Ursula K. Le Guin, Daniel Keyes, Douglas Adams e Nelson de Oliveira. De fato, nota-se o eco da “new wave” da ficção científica, da qual Le Guin e Keyes fizeram parte, que se preocupava mais com os impactos sociais da tecnologia do que com seu funcionamento técnico. Além disso, o humor de Adams e a preocupação estética de Oliveira também se fazem notar como inspiração no tom de comentário social que algumas das tramas assumem. Obras audiovisuais, como a já citada série Black Mirror, além de Ex Machina e Electric Dreams, também se fazem notar entre os contos. Se hoje vivemos uma pandemia, cenário desde sempre propício para a ficção científica, a autora acredita que agora essa situação passou para o terreno do realismo. “Tudo o que a gente vive é material, então todo mundo vai ter um material rico, compartilhado, mas como é um gênero muito imaginativo, certamente não vai beber do que é a pandemia. Vai achar outras formas de discutir isso, outras possíveis doenças, outros possíveis isolamentos que discutam assuntos que a gente não está imaginando ainda.”

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