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'Contar Tudo' é um comportado clarão no fim do túnel

Jeremías Gamboa foi anunciado como grande promessa

Por Victor Heringer - Autor
Atualização:

A nossa é uma literatura de fenômenos. De tempos em tempos, alguém explode. Os motivos da explosão nem sempre são claros, mas os leitores percebem o clarão. Quando a luz volta ao normal e os olhos se reacostumam, o que vemos é um escritor - ou os estilhaços de um. Jeremías Gamboa, ao que tudo indica, é um desses clarões. Apadrinhado por Vargas Llosa e anunciado como grande promessa antes mesmo da publicação de Contar Tudo, virou “fenômeno literário”.

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Goste-se ou não, a figura do fenômeno literário (que nem sempre coincide com o fenômeno de vendas) nos ajuda a entender a atual situação da literatura latino-americana. Esses autores, supõe-se, são os pontos luminosos dentro da curva da chamada “literatura séria”, aqueles que conferem uma imagem ao cânone contemporâneo e que, se não estilhaçarem, acabam por se tornar espelhos nos quais o mundo literário se mira.

O espelho invertido de Gamboa são os autores do boom. Sua obra, como afirma, é “pessoal”, ao passo que a dos boomers seria “social”. Quer “entender a si mesmo”, não a “coletividade”. Essa oposição esquemática não é difícil de perceber em Contar Tudo, a simpática história do aspirante a escritor Gabriel Lisboa, cujos traços autobiográficos vão muito além da rima pobre nos sobrenomes. 

A trama: Lisboa, menino humilde recém-chegado à capital peruana, aos poucos descobre os rudimentos da redação, o jornalismo, a poesia, etc. - e se torna escritor. O itinerário é longo, bem conhecido e empanturrado de minúcias, narrado por um protagonista cujo bom-mocismo (adorável ou irritante, a depender do humor do leitor) se reflete na linguagem do romance. Contar Tudo é prosa bem-comportada, às vezes piegas (“nos abraçamos, e então eu soube que éramos amigos”), às vezes francamente kitsch (“a vida, como um manuscrito em processo, podia ser reescrita”). Contente por chegar aonde todos já chegaram, Lisboa é uma espécie de antidetetive selvagem, para citar outro clarão recente, Bolaño. 

O aspecto “social”, que segundo o autor preocupava demais os velhos boomers, comparece no romance, mas como pano de fundo. Os conflitos fronteiriços com o Equador, a “esquerda subversiva” da Universidade de Lima, a condição de pária ilustrado do narrador, nada disso é realmente posto em discussão, como se abordar qualquer questão coletiva a sério perigasse ser lido como militância, indigna de um escritor profissional. O mundo de Contar Tudo é o de Francis Fukuyama, não o dos relatórios do IPCC.

Como todo fenômeno, Contar Tudo nos diz muito sobre algumas tendências da literatura contemporânea: a preocupação em simplesmente contar uma história (isto é, sem muitas invencionices formais); a obsessão endogâmica por escrever sobre escrever; a ciranda de citações (o autor como DJ); até mesmo nossas ambições de “profissionalização” são as mesmas de Lisboa, que, entretanto, falha em notar o contraste entre o profissionalismo e a velhíssima instituição do apadrinhamento.

Ao que parece, a magia límpida do realismo mágico foi enfim civilizada, e o que sobrou foi somente a limpidez, uma cândida e simpática limpidez: os “meios de expressão” arrumadinhos, as anedotas edificantes e os autores que querem contar tudo, sobretudo sobre si mesmos, neste universo cheio de explosões luminosas. Só nos resta esperar que algo cintile num ponto fora da curva.VICTOR HERINGER É ESCRITOR, AUTOR DO ROMANCE GLÓRIA (2012), ENTRE OUTROS 

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