Como a literatura ajuda a explicar a relação entre Rússia e Ucrânia

De Gogol e Bulgakov a Oksana Zabuzhko e Andrey Kurkov, escritores recriam em seus livros embates artísticos e políticos

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Por João Luiz Sampaio
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No dia 22 de março, a poeta ucraniana Oksana Zabuzhko fez um contundente discurso no Parlamento Europeu. Ucranianos, disse, estão lutando para libertar a Europa do espectro do totalitarismo. “Estou aqui para dizer a vocês, como uma escritora, como alguém que trabalha com a linguagem, que este não é um conflito local. É uma guerra ampla que já começou.”

Poucos dias depois, o romancista Andrey Kurkov, de passagem por Londres antes de retornar à Ucrânia, atacou, em entrevista ao jornal The Guardian, o presidente russo Vladimir Putin e o que chamou de desejo de retornar aos dias de União Soviética. A vida em Kiev, continuou, agora se dá com a possibilidade de morrer a qualquer momento. “Acho que posso chamar isso de roleta russa.”

Os cossacos de Zaporozhian, que buscavam um estado próprio ucraniano no século 17, representados em tela deIlja Repin Foto: WikimediaCommons

A literatura não tem passado ao largo do conflito na Ucrânia. Zabuzhko e Kurkov são apenas dois representantes de uma geração de escritores que têm se colocado contra o conflito. Movimentos também têm sido criados para ajudar autores do país. A Feira de Frankfurt, principal evento do mercado editorial internacional, criou um programa de apoio a editores, livreiros e escritores ucranianos. E ao menos um livro já foi escrito sob o impacto da guerra: The War: The Children Who Will Never Get To Read Stories (A Guerra: Crianças que nunca lerão histórias), preparado em nove dias pela editora da ucraniana Nataliia Mospan e lançado em março na Feira Infantil de Bolonha.

'The War'contaa história real de algumas das mais de 100 crianças que morreram até abril, quando o livro foi idealizado por Nataliia Mospan Foto: Maria Fernanda Rodrigues/Estadão

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Na entrevista ao The Guardian, Kurkov fez um apelo: que o mundo comece a entender a diferença entre a Rússia e a Ucrânia. A criação literária e os livros de história são caminhos possíveis para isso. Mas, no mundo da literatura, estabelecer a separação entre os países não é tarefa fácil, que se mistura à história da região.

“Se voltarmos ao século 19, vamos encontrar uma série de escritores ucranianos fundamentais para a literatura russa. Eles escrevem no idioma russo, que era o principal meio de expressão literária do período. Ao mesmo tempo, porém, vão muitas vezes se voltar às raízes ucranianas na hora de criar seus principais livros”, explica o tradutor Irineu Franco Perpetuo, responsável por verter para o português obras como O Mestre e Margarida, de Mikhail Bulgakov, além de livros de Ivan Turguêniev, Leon Tolstói e Aleksander Pushkin.

Entre os escritores ucranianos, ele destaca o nome de Nikolai Gogol, responsável pela grande prosa de língua russa do período. Entre seus livros, está Tarás Bulba, que tem como personagem um cossaco que se une ao exército ucraniano para lutar contra a Polônia. “A novela tem uma vertente rural que busca uma raiz ucraniana. É algo que aparece em outras manifestações artísticas. A Sinfonia nº 2 do russo Tchaikovski, chamada de Pequena Rússia, também representa a tentativa de buscar no folclore ucraniano uma ideia de nacionalidade.”

Já no século 20, outro escritor ucraniano vai se destacar, Bulgakov, conhecido em especial por O Mestre e Margarida. A história é ambientada na Moscou dos anos 1930 e narra a passagem de satã pela cidade, acompanhado de um gato falante e outras personagens que beiram o absurdo e se prestam a uma sátira ao meio literário russo e ao regime soviético.

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Mikhail Bulgakov recupera memórias de infância na Ucrânia em livros como 'Diário de Turbin' Foto: IMDB

Antes, porém, ele vai lançar, em meados dos anos 1920, o livro de contos Anotações de um Jovem Médico, no qual narra a experiência como médico em um pequeno hospital no interior da Rússia (em 2013, as histórias serviriam de base para a série Diário de um Jovem Médico, em que Daniel Radcliffe vive um doutor mandado para trabalhar na Sibéria durante a Revolução de 1917). 

A Ucrânia também é cenário para a peça Os Dias de Turbin, sobre uma família antibolchevique de Kiev, capital ucraniana, onde comunistas e anticomunistas digladiavam-se após a Revolução de 1917 – e um dos cenário onde, entre 1918 e 1921, deu-se uma guerra na qual a Ucrânia tentava conquistar a independência de seu território. Em um primeiro momento, a luta foi bem sucedida, mas o país acabaria derrotado.“Esses livros trazem de alguma forma as experiências da juventude de Bulgakov na Ucrânia”, diz Perpetuo. “Em Os Dias de Turbin, por exemplo, há toda uma cena em ucraniano.”

Ele lembra ainda Leon Tolstoi, que lutou na Guerra da Crimeia, que entre 1853 e 1856 opôs o Império Russo a uma frente formada por Reino Unido, França, o Reino da Sardenha e o Império Otomano. “Nos Contos de Sebastopol, a experiência de Tolstoi na Crimeia está presente, assim como a experiência militar vai ser base quando ele for tratar do tema em Guera e Paz.”

O escritor Lev Tolstoi em Yasnaya Polyana, 1908, em sua única fotografia colorida Foto: Sergei Prokudin-Gorski

Autores ucranianos de origem judaica também deixaram sua marca em livros que descrevem a vida no país. Isaac Bábel e Vassily Grossman representam, diz Perpetuo, “a vitalidade da comunidade judaica ucraniana”. “Os Contos de Odessa, de Bábel, trazem desde histórias muito divertidas até a violência dos relatos de pogrom (termo usado para designar agressões e assassinatos cometidos contra minorias).” “Gogol e Bulgakov foram considerados satiristas, mas por outro lado tinham o idioma russo como forma de expressão. O caso de Gogol em especial é representativo. Ele não vê conflito entre Ucrânia e Rússia. Ele dizia que suas sátiras eram sociais e de costumes e não políticas. No fundo, ele entendia russos e ucranianos como irmãos e não como inimigos”, diz Perpetuo. 

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Literatura russa X literatura em língua russa

Doutor em literatura russa e tradutor, Lucas Simone acredita que em vez de falar em literatura russa, poderíamos utilizar o termo “literatura de língua russa”, como se faz com a literatura de língua francesa, que inclui aquilo que é feito no Haiti e em outras ex-colônias, ou mesmo com a literatura de língua alemã, da qual fazem parte também escritores austríacos. Nesse sentido, é possível pensar em autores ucranianos que escreveram em sua própria língua e cuja obra de alguma forma assume postura mais crítica à Rússia. “É uma distinção que nesse momento ganha particular importância. O fato é que a Rússia é um país multiétnico. Há regiões em que as pessoas não são etnicamente russas, mas, juridicamente, sim. São autores armênios, bielorrussos e também ucranianos.”

Para ele, é complicada a relação entre os idiomas usados na região. “Os cazaques, por exemplo, têm uma língua própria, que vem de um outro tronco linguístico. Já o ucraniano é uma língua mais próxima da russa. Seria como a diferença do português para o italiano. Mas a relação entre elas é assimétrica. Os ucranianos conseguem reproduzir o russo, mas o contrário não é verdade.”

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Segundo Simone, os primeiros embriões da língua ucraniana surgem já no século 15, quando começa a existir um afastamento do russo moscovita. No século 17, ele se torna ainda mais claro durante a guerra que opôs poloneses e as hordas cossacas ucranianas, que buscavam formar um estado próprio, o Zaporozhian Sich. “Nas conversas entres moscovas, poloneses e cossacos, era necessária a presença de intérpretes”, conta o tradutor. 

No século 18, a obra do poeta, filósofo e compositor Gregory Skovoroda vai representar uma espécie de pré-história da literatura ucraniana. E, durante o século 19, vai começar a surgir o contraponto a uma cultura russófila. “Gogol dialoga com a tradição rural ucraniana, mas a coopta como parte de uma tradição russa. Não é por acaso. Kiev era, então, uma cidade russófila, o que se manifestava nas artes. Mas a ligação com o folclore de Skovoroda vai significar um contraponto a esse contexto.” Personagens centrais desse movimento foram os Kobzar, figuras cuja origem remonta ao século 16. O nome vem de “kobza”, um instrumento de cordas que esses bardos ucranianos usavam como acompanhamento de suas narrativas, com as quais viajavam pelo país. Um deles, Taras Shevchenko, criou poesias inspiradas em lendas populares ucranianas que acabaram por ser um passo a mais na construção de uma língua própria. 

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Um ponto de virada importante, segundo Simone, vai se dar na segunda metade do século 19. Com a derrota da Rússia na Crimeia, em 1856, e o fim do reinado de Nicolau I, morto em 1855 e conhecido pelo desejo expansionista e pela mão pesada contra dissidentes políticos, começa um momento de relativa liberdade. “Mas não demora muito e vem um rebote, com movimentos radicais russos questionando a ideia de uma identidade nacional ucraniana.” Em 1876, um decreto do czar Alexandre II proíbe a publicação de qualquer obra literária em ucraniano e o idioma é banido.

Contra o domínio russo

É nesse momento, no entanto, que alguns autores de corte nacionalista e ativista vão surgir, levantando-se contra o domínio russo. Um deles foi Ivan Franko, autor realista que descreveu em seus livros, por exemplo, a situação precária dos trabalhadores e camponeses. Há uma cidade batizada com seu nome, Ivan-Frankviski, a mil quilômetros da fronteira com a Rússia; e, em Kiev, uma avenida em sua homenagem – na qual um grupo de 12 civis foram mortos por tropas russas no dia 4 de março. 

Após a Revolução de 1917, o espírito nacionalista foi reavivado, mas, com a chegada de Josef Stálin ao poder, começaria nova época de repressão. Kobzars foram fuzilados e a russificação da cultura dos países agora integrados à União Soviética foi reforçada.

Seria então apenas com a Perestroika, movimento de reorganização política que levaria ao fim da União Soviética, que uma nova fase da literatura começaria a tomar forma. O ucraniano foi decretado língua oficial e começaram a surgir autores de expressão ucraniana, muitos deles ligados abertamente a questões políticas, uma tendência geração atual.

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Em 1996, Oksana Zabuzhko lançou Fieldwork in Ukrainian Sex, livro tido como marco inaugural de uma nova literatura ucraniana, no qual a história da separação de um casal de artistas é narrada em diálogo com a história do país e sua busca por uma identidade.

Oksana Zabuzhko é autora de livro sobre história da Ucrânia e sua busca por identidade Foto: Syur

O mais recente livro de ficção de Andrey Kurkov, Grey Bees, lançado em 2018, tem como tema a tomada de Donetsk por tropas russas e separatistas, em 2014. O personagem principal é um senhor que vive na zona cinzenta, que pertence oficialmente à Ucrânia mas vive sob domínio russo. Em uma das passagens iniciais, ele escreve sobre o barulho terrível dos homens retirados à força da região, chorando e xingando, substituído mais tarde pelo silêncio ensurdecedor da rua Lenin vazia. 

Os episódios de 2014 também inspiraram Mondegreen, de Volodymyr Rafeyenko, sobre um professor universitário que deixa a região em direção a Kiev; Voroshilovgrad, de Serhiy Zhadan, em que um homem sai à procura do irmão em Donbas; e Apricots of Donbas, de Lyuba Yakimchuk, sobre a dificuldade – prática e simbólica – de voltar para casa após o conflito.

Como a literatura vai retratar a atual guerra na Ucrânia

Pode ainda ser cedo para prever como a literatura de autores ucranianos vai retratar a guerra atual. Mas diversos autores da atual geração têm se manifestado. Um dos mais virulentos é Zhadan, que em sua página no Facebook tem questionado não apenas a invasão russa como a reação da Europa e dos Estados Unidos a ela. 

O autor também tem se posicionado a favor do banimento de artistas russos. “É a Grande Narrativa da cultura russa. Uma cultura que serviu sempre de desculpa para a violência e o desprezo com relação aos outros”, escreveu em um post. Em outro, conclamou o ocidente à ação. “Esta é a terceira guerra mundial. E o mundo civilizado não tem o direito de perder se quer mesmo ser civilizado e independente.”

Já Olena Stiazhkina, escritora e historiadora, autora de Zero Point Ukraine, sobre o que aconteceu no país durante a Segunda Guerra, manteve até o início de abril um diário sobre o que testemunhou durante o recente conflito. Em seguida, foi a Veneza, onde seus cadernos foram expostos na Bienal. 

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“A mãe de uma menina de Mariupol, que foi morta por um foguete russo, percebeu tudo o que se tinha passado imediatamente. O médico tentou ressuscitá-la, à menina de Mariupol, na esperança de um milagre. Sem sucesso, o médico gritou mais alto do que todas as sirenes de ataques aéreos do mundo juntas. O grito foi aterrador: Maldito! Maldito!. A mãe calou-se para sempre.” A ficção terá dificuldade de ultrapassar o mundo real. 

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