Chekhov policial revela compaixão pela dor humana

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Por Luiz Carlos Merten
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De todas as frases feitas que a editora - a Companhia das Letras - selecionou para avalizar o lançamento de sua coleção Georges Simenon, a que mais impressiona, pela justeza, é a de William Faulkner. André Gide diz que Simenon foi o romancista mais genuíno que já existiu. P.D. James observa que, mais que qualquer outro autor policial, ele combina apelo popular com grande reputação literária, mas Faulkner vai ao ponto. Ao dizer por que gosta de ler Simenon, ele acrescenta que o “pai” do comissário Maigret o faz pensar em Chekhov. Há em Simenon uma economia da escrita que pode também fazer pensar em Ernest Hemingway. Frases curtas, diálogo enxuto, descrições sucintas, ausência de sentimentalismo. E essa capacidade infinita, à Chekhov, de investigar as pequenas vidas, de perscrutar a alma humana. Maigret leva uma vida regrada com a mulher, no apartamento do Boulevard Richard Lenoir. Frequenta os pequenos restaurantes, vai muito ao cinema com Mme. Maigret. Não tiveram filhos. Volta e meia surge algum sobrinho. Têm poucos amigos. Durante os grandes interrogatórios no Quai des Orfèvres, encomenda sanduíches e cerveja daquela taverna da rue Dauphine. Mantém uma relação profissional com os criminosos. Estão em campos opostos, mas se respeitam. Não é ressentido, talvez seja naturalmente amargurado, pelo que aprendeu da natureza humana. E, por isso, com a aposentadoria, sonha deixar a cidade e mudar-se para um vilarejo à beira do rio, para cultivar sua horta. E pescar. É um grande, um magnífico personagem, e não se completa sem o cachimbo, inseparável. Ocupa uma parte considerável da produção literária de Simenon, que escreveu 75 romances e 28 contos protagonizados pelo comissário, informa o sumário da própria editora. Isso tudo, e é muito, ocupa apenas pouco mais de um quarto dos 400 livros que Simenon escreveu. Existem também os romances psicológicos, mais chekhovianos ainda. Por suas intrigas policiais, Simenon foi muito adaptado para o cinema e a televisão. Maigret seduziu/seduz gerações de espectadores. O próprio escritor, numa declaração premonitória, disse certa vez que Jean Gabin "vestiria bem" muitos de seus personagens. Gabin protagonizou dez adaptações de Simenon, mas apenas três são filmes com Maigret, dois dirigidos por Jean Delannoy - Assassino de Mulheres/Maigret Tend Un Piège e O Castelo do Medo/Maigret et l'Affair Saint-Fiacre. Mas também se inspirou em Simenon o admirável Pierre Granier-Deferre de O Gato, em que Gabin e Simone Signoret faziam um casal de velhos num apartamento arruinado como a vida deles. O próprio Simenon considerava o trabalho de Gabin tão “alucinante” que dizia que o limitava - ele só conseguia imaginar seu comissário na pele do lendário ator francês. Embora tenha morrido em 1989 - há 25 anos -, Simenon nunca saiu de cena. Seus livros estão sempre sendo reeditados, filmes seguem sendo feitos. A Companhia das Letras lança sua coleção num formato diferente do da &LPM, que detinha os direitos. Você ainda encontra os livros de bolso da antiga editora em bancas. Os primeiros volumes da nova coleção relatam as primeiras (e ótimas) aventuras do comissário, todas de 1931 - Pietr, o Letão, O Cavalariço da Providence e O Enforcado de Saint-Pholien. Em Cannes, estreou o Simenon de Mathieu Amalric, La Chambre Bleu, que o vilão de 007 - Quantum of Solace dirigiu e também escreveu e interpretou, ao lado da mulher, a atriz Stéphane Cléau. Não um Maigret, mas uma trama criminal. Um casal de amantes, numa pequena cidade, é levado a julgamento. São acusados de matar os respectivos companheiros. Ele se defende, é covarde. Ela assume a posição de ter feito o que fez, por amor. O julgamento é a história da ruptura, mesmo que permaneçam atados na condenação. Simenon escreveu muito. A única coisa que fez mais que isso foi sexo - na autobiografia, revelou que enumerava e foi para a cama com dez mil mulheres (dez mil!). O sexo, que o impulsionava, pode ser o motor de muitos de seus crimes, mas certamente ele não o descrevia nos livros. O que o movia era o patético da alma que, em muitos livros com Maigret, senão em todos, faz com que o comissário tenha infinita compaixão pelo humano.

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