09 de janeiro de 2020 | 06h00
O poeta João Cabral de Melo Neto pertencia a uma família ilustre: seu irmão é o historiador Evaldo Cabral de Melo, além de ter sido primo do poeta Manuel Bandeira e do sociólogo Gilberto Freyre. E, como os demais, João Cabral construiu uma carreira singular, tornando-se um dos principais poetas da língua portuguesa do século 20, da mesma grandeza de Pessoa e Drummond.
O escritor pernambucano que não acreditava em inspiração - para ele, a obra-prima era fruto do extenuante trabalho com a palavra - será festejado ao longo deste ano e o ponto de partida é esta quinta-feira, dia 9, quando é lembrado o centenário de seu nascimento (ele morreu em 1999, aos 79 anos). Por conta disso, uma série de novas edições de sua obra completa vai preencher a temporada editorial para comemorar a efeméride.
Cabral era um estilista mesmo não admitindo - cada verso era cuidadosamente pensado, a fim de dar forma a uma estrutura consistente do poema, o que o tornava conhecido como o poeta da matéria, por seus versos secos, exatos, sem ilusões e de emoções omitidas. Estudioso da obra cabralina desde 1977, o também poeta Antonio Carlos Secchin é figura central no trabalho de reedição - no primeiro semestre, a Alfaguara vai lançar um volume com poesia completa organizada por ele, que acrescentou trabalhos inéditos, descobertos pela pesquisadora Edneia Ribeiro - um deles, A Nuvem Sobre a Batalha, é divulgado pelo Estado com exclusividade.
Também poemas inéditos são acrescentados - o arquivo de Cabral deixado aos cuidados da Casa de Rui Barbosa, no Rio, revela-se um verdadeiro tesouro, pois mais de 40 poesias inéditas já foram identificadas e ratificadas. Um volume de prosa também está nos planos da editora, para o segundo semestre, incluindo entrevistas e discursos que se encontravam dispersos ou sem publicação. Aqui, a organização será de Sergio Martagão Gesteira.
Estão previstas ainda uma fotobiografia, organizada por Eucanaã Ferraz, e uma nova biografia, assinada por Ivan Marques. Obras que reforçam o perfil de um poeta que construiu uma obra marcada tanto por uma tendência surrealista como por assuntos populares. Comum, na verdade, era o rigor estético, que gerou poemas avessos a confessionalismos e marcados pelo uso de rimas toantes, inaugurando uma nova forma de fazer poesia no Brasil.
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09 de janeiro de 2020 | 06h00
A NUVEM SOBRE A BATALHA
Centenário de João Cabral de Melo Neto é celebrado com volumes de obras inéditas e biografia
Não há nuvem sobre a batalha.
Nas guerras de antes, sim havia.
Hoje na nuvem está a batalha
não a chuva que a ignoraria.
Hoje, ao pensar Joaquim Cardozo
o que me disse lembro, ainda,
dia que os jornais noticiaram
a nuvem caída em Hiroshima.
“Não há nuvem sobre a batalha.
Minha imagem foi abolida.
Hoje a nuvem leva navalhas
no que foi chuvada ontem-em-dia.
Da guerra em duas dimensões,
em que a vitória era uma colina,
a guerra última foi de dentro:
a nuvem choveu na cozinha”
(Poema inédito que estará no livro organizado por Antonio Carlos Secchin)
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09 de janeiro de 2020 | 06h00
O poeta Antonio Carlos Secchin tornou-se referência sobre a obra de João Cabral de Melo Neto. Sobre o assunto, ele respondeu às seguintes questões.
Não temos “o” grande poeta da língua, mas vários, cada um grande à sua maneira. O que me parece marcar a contribuição de Cabral é ele não se inserir na chamada “linha evolutiva” da literatura, com suas ascendências e descendências bem assentadas. Nesse sentido, ele é um solitário - sem pais, mas, infelizmente, com muitos filhos adotivos, que diluíram sua notável e rigorosa lição.
Centenário de João Cabral de Melo Neto é celebrado com volumes de obras inéditas e biografia
No campo da poesia, devemos distinguir, no que se reporta à música do verso, dois elementos: a melodia e o ritmo. A melodia se vincula à rima tradicional, às aliterações, às paronomásias, e, nesse sentido, João Cabral de fato a evitava, julgando-a entorpecente, anestésica, tudo que ele considerava que a poesia não devia ser. Já o ritmo é incontornável, diz respeito à distribuição de tônicas e átonas no verso, e a isso Cabral foi atentíssimo, logrando resultados muito expressivos no emprego, por exemplo, de métricas alternadamente regulares e irregulares ao longo de uma estrofe. Não por acaso, era aficionado da música cigana, em que a voz às vezes parece soar apenas como um grito, mas em que a sustentação rítmica é essencial. De resto, se no Romantismo e no Simbolismo tentou-se fazer de poesia e música artes afins, no contexto cabralino, a afinidade, sem dúvida, seria com as artes plásticas, a pintura, a arquitetura - artes de se ver, não de se ouvir.
Sua poesia decerto seria diversa se ele não houvesse tido a experiência profissional (e pessoal) na Espanha, onde serviu como diplomata. Se é rara a impregnação de autores de língua portuguesa em sua produção poética, é vasta a presença cultural da Espanha, não só no campo literário - ele estudou as letras hispânicas desde as origens, e disso tirou partido -, mas no campo de manifestações populares, como o citado “cante” cigano e a tauromaquia. Tudo reprocessado em sua criação, que, aliás, não hierarquiza “alta” e “baixa” cultura.
Trata-se de um magnífico livro-poema, de 1950, em que, de maneira a meu ver pioneira, o compromisso para com social não abdicou do compromisso para com a forma literária. O risco da poesia engajada é ser muito mais engajada do que poesia. Em Cabral, isso não ocorre. E é sintomático que ele, a meu ver o mais denso poeta brasileiro nessa temática, não tenha colaborado nos três volumes de poesia participante do Violão de Rua, de teor mais panfletário, antologias que fizeram grande sucesso no início da década de 1960.
Creio ser essa a obra mais estimada de toda a história da poesia brasileira, já tendo provavelmente ultrapassado a centena de edições, sem falar nas adaptações para outras linguagens (a TV, o cinema, os quadrinhos). Sim, no texto ocorre aquela mescla não hierarquizada entre o popular e o erudito, mas o sucesso desse auto de Natal pernambucano reside principalmente na denúncia não demagógica de nossas mazelas sociais. É poema contundente sem ser paternalista ou messiânico. Cabral considerava desnecessário “tomar partido” de modo explícito; bastava “dar a ver” o real, que se autodenunciava em sua injusta e escandalosa precariedade.
Faz jus, sim, mas, como toda etiqueta, não dá conta da complexidade da obra. Vários outros rótulos poderiam ser a ele atribuídos: o poeta do Capibaribe (a que dedicou três livros), o poeta da antilira... eu próprio o denominei “o poeta do menos”. Melhor, creio, é vê-lo simplesmente como poeta - sem necessidade do acréscimo de nenhum adjetivo.
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09 de janeiro de 2020 | 06h00
“Eu tinha 14 anos e nosso grupo de teatro tinha como especialidade teatralizar poemas. O que me impactou mais foi a poesia de João Cabral de Melo Neto, que considero o maior poeta de todos os tempos. Pela sua profundidade e suavidade, a forma lúdica como ele olha o Nordeste e a história da nossa gente.
Centenário de João Cabral de Melo Neto é celebrado com volumes de obras inéditas e biografia
O poema Morte e Vida Severina ganhou ainda mais beleza e força quando Chico Buarque musicou. Quando eu tinha 16 anos, fiz um dos personagens de Morte e Vida Severina para João Cabral. Ele foi levado pelo nosso grupo de teatro a Campina Grande. Fiz também a linda montagem da TV Globo, dirigida por Walter Avancini, em que eu fiz a “mulher da janela”, um diálogo de uma rezadeira com Severino em uma situação de muita pobreza.
Ouça o depoimento de Elba Ramalho sobre o poeta
A gente quase se encontrou em Barcelona quando alguém intermediou nosso encontro, mas acabou não dando certo. Fiquei amiga da mulher dele. João era ateu e a mulher dele me convidava para ir lá rezar para ver se ele tinha uma conformidade maior do estado de saúde em que ele estava e poder compreender um pouco mais sobre Deus através de mim. No dia que pude ir, ele faleceu. Mas tenho certeza que ele estava bem acompanhado em seus últimos dias.”/DEPOIMENTO A RENATO VIEIRA
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09 de janeiro de 2020 | 06h00
Uma história do início dos anos 1990, relatada depois pelo escritor Otto Lara Resende, ilustra a relação tensa, mas também intensa, que João Cabral de Melo Neto tinha com a matéria - e com seu inevitável desaparecimento, isto é, a morte. O corpo de um “imortal” da Academia Brasileira de Letras era velado na sala dos Poetas Românticos. Membro da ABL desde 1969, Cabral era esperado no velório, mas faltava-lhe coragem para sair de casa. Embora fosse ateu convicto, a morte sempre o assustou.
Centenário de João Cabral de Melo Neto é celebrado com volumes de obras inéditas e biografia
Por fim, chamou um táxi e foi, mas não conseguiu avançar além de uma sala anexa. Foi em seu refúgio que Otto, ele também acadêmico desde 1979, o encontrou. Logo sentiu, pela expressão devastada de Cabral, que ele vivia uma situação insuportável. Sentiu, mas silenciou. “Eu achei que, se comentasse o que via, ele desmaiaria de pavor”, relatou muito depois. Homem de grande coração, Otto inverteu as coisas. Aproximou-se de Cabral e disse: “Não estou me sentindo nada bem, preciso sair daqui. Mas tenho até medo de pegar um táxi sozinho. Você me acompanharia?”.
“Pode deixar, eu o levo até em casa”, Cabral se apressou em dizer. Chamaram o táxi e foram juntos rumo à zona sul. Otto desceu primeiro, no Jardim Botânico. Só depois Cabral fez todo o percurso de volta, até seu apartamento na praia do Flamengo. Assim que chegou em casa, apressou-se em telefonar para o amigo. “Você está melhor? Está mais calmo?” Só então Otto abriu o jogo. “Eu estou ótimo. A morte não me assusta. Você sim estava péssimo, mas se eu lhe dissesse isso, ficaria ainda pior.”
Ateu convicto, materialista por formação, João Cabral costumava dizer: “Não acredito em Deus, mas acredito no inferno”. O paradoxo ilustra sua sensibilidade complexa, suas dificuldades com os sentimentos, seu coração frágil, sempre escondido sob a imagem do “poeta de pedra”. Cabral - que se declarava marxista - cultivava, como poeta, a pose de um engenheiro das palavras. Odiava música, menosprezava o lirismo e defendia uma estética objetiva e luminosa, na qual as palavras fossem manipuladas como tijolos, e esculpidas como um diamante. “Camarada diamante”! - Vinicius de Moraes, grande amigo, mas em tudo seu contrário, o saldou em um poema célebre.
Os críticos ortodoxos e os leitores apressados sempre acreditaram nessa definição. “Magro entre pedras”, como o viu Vinicius, o poeta do concreto e das superfícies já em 1950, aos 30 anos de idade, em um de seus poemas mais belos, O Cão Sem Plumas, desmentiu - para quem teve a coragem de ver - essa máscara de ferro. São versos, de fato, atravessados pela mais vibrante claridade. Mas trata-se de uma claridade que treme. Assim começa seu célebre poema: “A cidade é passada pelo rio/ como uma rua/ é passada por um cachorro;/ uma fruta/ por uma espada”. Pode-se “ver” o poema - seguindo uma fórmula de Paul Valéry, Cabral dizia escrever para “dar a ver”. Mas uma vibração de fundo, sutil, porém intensa, denuncia o mar de sentimentos que o poema arrasta.
Alguns versos à frente, Cabral expõe, de modo direto, sua sensibilidade social: “Mas ele conhecia melhor/ os homens sem pluma./ Estes/ secam/ ainda mais além/ de sua caliça extrema”. Sob imagens duras, João Cabral - sem ceder ao panfleto, ou à “poesia engajada” - desenha a figura dos homens miseráveis que bordejam o Capiberibe. Este engajamento político tornou-se indiscutível em Morte e Vida Severina, poema de Duas Águas, livro de 1956. Cabral, porém, nunca apreciou, ele mesmo, as coisas indiscutíveis e as ênfases. E por isso chegou a dizer, mais tarde, que Morte e Vida Severina - transformado por Chico Buarque em um inesquecível musical - foi “o pior poema” que escreveu.
Na primeira vez em que ele e Chico se encontraram, o músico não poupou palavras para expressar seu entusiasmo com o poema que acabara de ler. Sempre direto na expressão dos sentimentos, Cabral se revoltou: “Não fiz esse poema para você gostar. Para você eu fiz Uma Faca Só Lâmina - poema de aparência quase matemática que surgiu no mesmo Duas Águas. Para nossa sorte, Chico ignorou a repreensão, e só por isso, algum tempo depois, musicou Morte e Vida para o grupo Tuca, da PUC de São Paulo. O musical, que chegou a ser exibido com sucesso no festival universitário de Nancy, na França, tornou-se - para aflição do próprio Cabral - sua obra mais conhecida.
Os sentimentos que transbordam em Morte e Vida Severina, porém, ainda que escoados em discretos subterrâneos, alimentam e sustentam toda a poética cabralina. Eles se manifestam igualmente em Sevilha Andando, livro que publicou em 1990, logo depois de se aposentar da carreira diplomática. Como diplomata, Cabral serviu por duas vezes em Sevilha, Espanha. Repetiu muitas vezes que o Recife - onde nasceu - e Sevilha eram as duas cidades que mais amava. Depois do lançamento de Sevilha Andando, porém, no intervalo de uma entrevista, confidenciou: “Ninguém consegue descobrir o maior segredo de meu livro. Que Sevilha, na verdade, é Marly”. Referia-se à poeta Marly de Oliveira, sua segunda esposa. O lirismo, mesmo desprezado, se infiltrava em seus versos.
No início dos anos 1950, ainda sob o governo Vargas, João Cabral chegou a ser suspenso, por um ano, de seus serviços no Itamaraty, sob a acusação de “comunista”. Só voltou a seu posto em 1954, graças a uma decisão contrária do Supremo Tribunal Federal. Também nesse caso transparecem os clichês que, ainda hoje, cercam a obra e a figura de Cabral. Seu materialismo nunca foi um dogma de almanaque. Ele nunca excluiu uma visão profunda da realidade - uma noção complexa e dinâmica do real. Também em seus versos, sob as imagens duras e precisas, latejam sentimentos delicados, percepções sutis, devaneios que vão muito além da dureza da matéria.
No centenário de seu nascimento, e com a exceção de leitores sensíveis como o crítico e poeta Antonio Carlos Secchin, provavelmente o maior especialista na obra cabralina, ainda não aprendemos a ler João Cabral. Ler através das palavras, ler para além das imagens brutas, ler equipados da “faca só lâmina” que ele, com tanto ardor, nos ensinou a manejar. Parece chegado o momento de rever nossos preconceitos. Cabral foi o poeta das emoções que estavam sempre à beira de explodir.
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08 de janeiro de 2020 | 13h54
Há 100 anos, no dia 9 de janeiro de 1920, nascia no Recife João Cabral de Melo Neto.
Diplomata de carreira e um dos principais nomes da literatura brasileira, ele deixou uma vasta obra poética, incluindo Morte e Vida Severina, sucesso também nos palcos, no cinema e na televisão. João Cabral morreu em 1999, no Rio, aos 79 anos.
O Estado selecionou 6 poemas de João Cabral de Melo Neto.
— O meu nome é Severino,
não tenho outro de pia.
Como há muitos Severinos,
que é santo de romaria,
deram então de me chamar
Severino de Maria;
como há muitos Severinos
com mães chamadas Maria,
fiquei sendo o da Maria
do finado Zacarias.
Mas isso ainda diz pouco:
há muitos na freguesia,
por causa de um coronel
que se chamou Zacarias
e que foi o mais antigo
senhor desta sesmaria.
Como então dizer quem fala
ora a Vossas Senhorias?
Vejamos: é o Severino
da Maria do Zacarias,
lá da serra da Costela,
limites da Paraíba.
Mas isso ainda diz pouco:
se ao menos mais cinco havia
com nome de Severino
filhos de tantas Marias
mulheres de outros tantos,
já finados, Zacarias,
vivendo na mesma serra
magra e ossuda em que eu vivia.
Somos muitos Severinos
iguais em tudo na vida:
na mesma cabeça grande
que a custo é que se equilibra,
no mesmo ventre crescido
sobre as mesmas pernas finas,
e iguais também porque o sangue
que usamos tem pouca tinta.
E se somos Severinos
iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual,
mesma morte severina:
que é a morte de que se morre
de velhice antes dos trinta,
de emboscada antes dos vinte,
de fome um pouco por dia
(de fraqueza e de doença
é que a morte severina
ataca em qualquer idade,
e até gente não nascida).
Somos muitos Severinos
iguais em tudo e na sina:
a de abrandar estas pedras
suando-se muito em cima,
a de tentar despertar
terra sempre mais extinta,
a de querer arrancar
algum roçado da cinza.
Mas, para que me conheçam
melhor Vossas Senhorias
e melhor possam seguir
a história de minha vida,
passo a ser o Severino
que em vossa presença emigra.
1.
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
(Paisagem do Capibaribe)
A cidade é passada pelo rio
como uma rua
é passada por um cachorro;
uma fruta
por uma espada.
O Rio ora lembrava
a língua mansa de um cão,
ora o ventre triste de um cão,
ora o outro rio
de aquoso pano sujo
dos olhos de um cão.
Aquele rio
era como um cão sem plumas.
Nada sabia da chuva azul,
da fonte cor-de-rosa,
da água do copo de água,
da água de cântaro,
dos peixes de água,
da brisa na água.
Sabia dos caranguejos
de lodo e ferrugem.
Sabia da lama
como de uma mucosa.
Devia saber dos polvos.
Sabia seguramente
da mulher febril que habita as ostras.
Aquele rio
jamais se abre aos peixes,
ao brilho,
à inquietação de faca
que há nos peixes.
Jamais se abre em peixes.
Abre-se em flores
pobres e negras
como negros.
Abre-se numa flora
suja e mais mendiga
como são os mendigos negros.
Abre-se em mangues
de folhas duras e crespos
como um negro.
Liso como o ventre
de uma cadela fecunda,
o rio cresce
sem nunca explodir.
Tem, o rio,
um parto fluente e invertebrado
como o de uma cadela.
E jamais o vi ferver
(como ferve
o pão que fermenta).
Em silêncio,
o rio carrega sua fecundidade pobre,
grávido de terra negra.
Em silêncio se dá:
em capas de terra negra.
em botinas ou luvas de terra negra
para o pé ou a mão
que mergulha.
Como às vezes
passa com os cães,
parecia o rio estagnar-se.
Suas águas fluíam então
mais densas e mornas;
fluíam com as ondas
densas e mornas
de uma cobra.
Ele tinha algo, então,
da estagnação de um louco.
Algo da estagnação
do hospital, da penitenciária, dos asilos,
da vida suja e abafada
(de roupa suja e abafada)
por onde se veio arrastando.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais” da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa.)
Seria a água daquele rio
fruta de alguma árvore?
Por que parecia aquela
uma água madura?
Por que sobre ela, sempre,
como que iam pousar moscas?
Aquele rio
saltou alegre em alguma parte?
Foi canção ou fonte
em alguma parte?
Por que então seus olhos
vinham pintados de azul
nos mapas?
No fim de um mundo melancólico
os homens lêem jornais.
Homens indiferentes a comer laranjas
que ardem como o sol.
Me deram uma maçã para lembrar
a morte. Sei que cidades telegrafam
pedindo querosene. O véu que olhei voar
caiu no deserto.
O poema final ninguém escreverá
desse mundo particular de doze horas.
Em vez de juízo final a mim preocupa
o sonho final.
Difícil ser funcionário
Nesta segunda-feira.
Eu te telefono, Carlos
Pedindo conselho.
Não é lá fora o dia
Que me deixa assim,
Cinemas, avenidas,
E outros não-fazeres.
É a dor das coisas,
O luto desta mesa;
É o regimento proibindo
Assovios, versos, flores.
Eu nunca suspeitara
Tanta roupa preta;
Tão pouco essas palavras —
Funcionárias, sem amor.
Carlos, há uma máquina
Que nunca escreve cartas;
Há uma garrafa de tinta
Que nunca bebeu álcool.
E os arquivos, Carlos,
As caixas de papéis:
Túmulos para todos
Os tamanhos de meu corpo.
Não me sinto correto
De gravata de cor,
E na cabeça uma moça
Em forma de lembrança
Não encontro a palavra
Que diga a esses móveis.
Se os pudesse encarar…
Fazer seu nojo meu…
Ao redor da vida do homem
há certas caixas de vidro,
dentro das quais, como em jaula,
se ouve palpitar um bicho.
Se são jaulas não é certo;
mais perto estão das gaiolas
ao menos, pelo tamanho
e quadradiço de forma.
Umas vezes, tais gaiolas
vão penduradas nos muros;
outras vezes, mais privadas,
vão num bolso, num dos pulsos.
Mas onde esteja: a gaiola
será de pássaro ou pássara:
é alada a palpitação,
a saltação que ela guarda;
e de pássaro cantor,
não pássaro de plumagem:
pois delas se emite um canto
de uma tal continuidade.
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