‘Autor que não corre risco é só um escriba', diz Javier Cercas

Em ‘Terra Alta’, escritor espanhol se volta contra o poder da elite de seu país

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Por Ubiratan Brasil
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O início de Terra Alta, um dos mais recentes romances do espanhol Javier Cercas, é de tirar o fôlego: o jovem policial Melchor Marín participa da equipe que investiga a mansão da família proprietária da maior empresa da região e, à medida que portas são abertas, corpos destroçados são encontrados, vítimas de longas e terríveis torturas.

Trata-se de um grande crime, talvez o maior, a ser solucionado por Melchor que, vivendo há quatro anos na região catalã da Terra Alta, busca esconder seu passado sombrio – a mãe, prostituta, foi assassinada e ele foi para a prisão por tráfico de drogas. Com isso, tornou-se uma lenda entre seus colegas de corporação.

Escritor espanhol Javier Cercas Foto: DANILO GALVÃO/FLIPORTO

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Com o espírito acalmado, Melchor se apaixona pela bibliotecária da vila e, juntos, têm uma filha, que recebe o nome de Cosette. A escolha não é aleatória, pois o policial norteou sua vida depois de ler, na cadeia, o clássico Os Miseráveis, de Victor Hugo, quando se sentiu representado pelo protagonista, Jean Valjean, que padece muito até encontrar um amor e ter uma filha, chamada Cosette. Terra Alta iniciou uma saga continuada por Independência, recém-lançada e ainda sem tradução no Brasil e no qual Cercas apresenta duros argumentos contra o poder da elite catalã. Sobre Terra Alta, Cercas respondeu por e-mail às seguintes questões. 

'O Rei das Sombras' parece marcar o fim de um ciclo em sua carreira e Terra Alta o início de outro. É certo? 

É certo. O Rei das Sombras foi muito importante para mim, porque foi o primeiro livro que quis escrever e porque tratava da minha família ou do passado mais incômodo da minha família (o passado franquista) e, quando terminei, senti que, com isso, o livro encerrou algo que havia começado vinte anos atrás com Soldados de Salamina – um tipo de livro onde a autoficção, os romances de não ficção, a mistura de gêneros dominavam. Também senti que, se continuasse pelo mesmo caminho, corria o pior risco que ameaça um escritor em determinado momento de sua carreira, especialmente se as coisas correram razoavelmente bem: o perigo de se repetir, de se tornar um mero imitador de si mesmo. Se o autor fizer isso, pode ganhar prestígio, dinheiro, prêmios e o que quiser, mas está morto, porque não pode mais dizer coisas novas. Terra Alta surge em grande parte do desejo de me renovar, de me reinventar como escritor. Claro, isso envolvia um risco, mas um escritor que não corre riscos é apenas um escriba. Eu, como pessoa, me considero razoavelmente covarde, mas, como escritor, não posso ser; um autor covarde é como um toureiro covarde: faz o trabalho errado.

Melchor é um personagem interessante, pois esconde um passado sombrio quando se espera que o protagonista seja, na maioria dos casos, moralmente correto. Como você define um herói?

Não sei. Se soubesse, talvez parasse de escrever, porque muitos dos livros que escrevi tentam formular da maneira mais complexa possível a difícil questão que você acaba de me fazer. O que sei é que Melchor é um personagem ambíguo, multifacetado e contraditório. Alguém disse que ele é um “policial bom e mau”, assim como Dom Quixote é um “louco são”. É verdade: Melchor é capaz do melhor, mas também do pior, ou quase. Seja como for, apesar de toda a dor que sentia, apesar de toda a sua violência, de toda a sua fúria e de todo o seu desejo de vingança – ou precisamente por causa deles –, apaixonei-me por ele. “Bem-aventurados os limpos de coração, porque eles veem a Deus”, diz Jesus Cristo no Sermão da Montanha. Melchor é isso: um coração limpo.

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E por que Melchor só compreende a si mesmo depois de ler 'Os Miseráveis', de Victor Hugo?

Eu também não sei. “De te fabula narratur”, escreveu Horacio, isto é: “A história fala sobre você”. É o que sente Melchor ao ler Os Miseráveis na prisão de Quatre Camins pela primeira vez, quando mal tinha dezoito anos: aquele livro remoto fala dele, é uma espécie de espelho que o devolve à sua própria existência, e ainda permite que ele se descubra como leitor e também sua vocação de policial. Revelações assim só acontecem com determinados livros, e eu senti que apenas Os Miseráveis poderia fazer algo assim com um cara como Melchor, um bárbaro nascido no bairro mais hostil da metrópole de Barcelona, filho de mãe prostituta e pai desconhecido, para o qual Os Miseráveis se torna um guia, uma espécie de Bíblia que quase serve para interpretar todos os acontecimentos de sua vida. Enfim: acho que esse também é um romance sobre leitura.

Leonardo Sciascia usou o suspense para falar sobre questões de identidade. O que você acha disso? O que mais te interessa na literatura policial?

Sua humildade, sua falta de pretensões literárias, seu caráter popular: a grande literatura sempre foi assim. Claro, eu já sei que existem pessoas – especialmente críticos literários, infelizmente – que surpreendentemente ainda pensam que o gênero de detetive é menor. Quem pensa isso não sabe o que é literatura: é simples assim. Na literatura, não existem gêneros maiores ou menores, mas formas maiores ou menores – melhores ou piores – de usar os gêneros. Tragédia, que era um grande gênero na Antiguidade, tem, é claro, Sófocles, Shakespeare e outros grandes escritores, mas também tem muitos escritores desinteressantes. O mesmo vale para o gênero policial, gênero tão recente que nasceu no início do século 19: tem Edgar Allan Poe, que o criou, Borges, Sciascia, Chandler, Simenon e outros grandes escritores, mas também tem muitos de escritores ruins ou medíocres. A realidade é que, em última análise, existem apenas dois tipos de livros: bons e maus. Todo o resto é palavreado.

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Por que isso acontece?

Uma das superstições literárias mais arraigadas de nosso tempo é aquela que diz que a boa literatura só pode ser uma literatura minoritária, secreta, quase catacumba. É falso, uma falsidade nascida de um mal-entendido criado há pouco mais de um século. A verdade é que muitas vezes a grande literatura foi muito popular (e é claro, insisto, nunca foi pretensiosa ou solene). Dom Quixote é o melhor romance que conheço e, em sua época, era enormemente popular e Cervantes era um escritor de muito pouco prestígio – Cervantes nunca teria conquistado o Prêmio Cervantes, que é o mais prestigioso em língua espanhola, ou não teria ganhado sem grande escândalo de críticos pomposos. O mesmo aconteceu com Shakespeare, cujos dramas dificilmente eram considerados literatura – eram entretenimento e muito populares. E os grandes romancistas e poetas do século 19, do próprio Hugo a Dickens, Balzac ou Lord Byron? Não estou dizendo, é claro, que apenas a literatura popular é boa literatura; o que estou dizendo é que a literatura popular não é necessariamente ruim e, acima de tudo, digo que o melhor que pode acontecer à literatura é que volte a ser popular, que volte a ser importante para as pessoas, que volte a dizer coisas relevantes. É por isso que gosto tanto do personagem popular do gênero policial.

Muitos escritores acreditam que o romance, como visto hoje, mesmo em suas formas menos clássicas, deve muito ao gênero policial, que sempre manteve a necessidade de categorias muito claras: personagens, investigação, demanda, conclusão. 

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Pode ser que o gênero policial, em parte precisamente por causa de sua popularidade, tenha permeado todos os outros gêneros. Borges, que reivindicou o gênero quando ainda precisava ser retirado do poço da subliteratura, disse que todos os romances são policiais. Claro que todos os meus sempre foram – e todos os livros de que gosto, de Dom Quixote até aqui –, pelo menos na medida em que em todos eles há um enigma e alguém que tenta decifrar esse enigma. É verdade que, em Terra Alta, a atmosfera policial é mais evidente do que em meus romances anteriores, porque é protagonizada por um policial que deve solucionar um crime hediondo. Mas devo dizer que não me propus de antemão a escrever uma narrativa policial – simplesmente percebi em certo momento que, talvez porque o centro do livro girasse em torno da possibilidade de justiça e da legitimidade da vingança, Melchor só poderia ser um policial. Seja como for, já te digo que, no terceiro volume da tetralogia, Melchor nem sequer é policial.

Você acredita na existência de um profundo parentesco entre a literatura de suspense e a psicanálise, no sentido de que há sempre, em ambas, uma verdade oculta a ser desvendada?

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Pode ser. E também com a filosofia: como Ricardo Piglia escreveu com graça, o policial talvez seja o derradeiro filósofo; em todo caso, como o filósofo e o psicanalista (ou como o jornalista ou historiador), o policial está sempre em busca da verdade. Todos buscamos a mesma coisa, só que cada um procura de forma diferente e com distintos instrumentos.

Eventos históricos são sempre de importância fundamental em seus romances – aqui, os atentados ocorridos em Barcelona; em 2017, e o movimento de independência catalã fazem parte da intriga do romance. Você costuma escolher os fatos históricos e depois escrever a trama ou é o contrário? Até que ponto a realidade interfere na sua escrita?

Sempre interfere, mas de forma diferente. A ficção pura não existe: é uma invenção de quem não sabe o que é ficção. Se a ficção pura existisse, não teria o menor interesse – aliás, nem seria inteligível. A ficção é interessante porque parte da realidade, porque é uma transfiguração da realidade que transforma o particular em universal, o que acontece com uma determinada pessoa em um certo momento e lugar reflete o que se passa com outros seres humanos em qualquer circunstância e a qualquer momento. A questão, portanto, não é se misturamos ficção e realidade – o que a literatura sempre fez desde Homero –, mas como as misturamos. É nisso que consiste a arte da literatura, ou pelo menos da ficção.

O mal é aliado da literatura?

Claro. Em um mundo feliz, não haveria literatura, pelo menos não haveria romances – talvez poesia: pouca e muito ruim. Os romancistas trabalham com o mal, com a dor, com os infortúnios e as crises: somos, nesse sentido, como carniceiros; os melhores de nós são como os alquimistas, que buscavam transformar o ferro em ouro – os melhores escritores transformam o mal, a dor, o infortúnio e a crise em beleza e significado. E por isso, ao contrário do que pensava quando era um jovem feliz e sem documentos – como dizia García Márquez – e queria ser um escritor pós-moderno – se possível, um escritor pós-moderno norte-americano –, a literatura é muito útil. Desde que não se proponha a ser útil, é claro: quando isso acontece, ela se torna propaganda ou pedagogia. E deixa de ser literatura. E deixa de ser útil.

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Como viveu durante a pandemia? Foi um momento criativo?

A verdade é que, se a pandemia não tivesse sido uma catástrofe coletiva, para mim teria sido uma bênção pessoal, pois nesses meses me dediquei em tempo integral ao que mais gosto, que é ler, escrever e pensar sobre as musaranhas (os menores mamíferos do mundo). E também tenho plena consciência, pois, apesar da angústia que me causa saber que tantas pessoas estão morrendo e a passar maus momentos, também sabia que o melhor que podia fazer contra isso era justamente ficar em casa. Sei que tudo isso soa mal, mas é a verdade, que quase sempre soa mal (é por isso que tantas pessoas gostam tanto de mentiras).

À medida que os artistas começam a criar sobre esse período da história, como você acredita que será a arte nascida a partir da era do coronavírus?

Não muito diferente do anterior ao coronavírus que, por outro lado, não acho que produza grandes obras diretamente; a história da humanidade é a história das pandemias, e nenhuma delas produziu diretamente grandes obras: temo que as pandemias não tenham quem as escreva (para relembrar García Márquez novamente). Outra coisa é indireta: por se tratar de uma grande crise, e como os escritores vivem de grandes crises – como disse antes –, é certo que o coronavírus será o combustível – não o tema – de muitas obras. Talvez nos próximos anos assistamos a uma explosão de criatividade alimentada pelo medo e confinamento e angústia e insegurança causados pela pandemia (embora eu não ache que essas obras falem de forma visível e direta sobre a pandemia). Eu desejo.

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