Autor Amós Oz se expõe ao interpretar Judas em novo livro

Israelense é considerado um traidor por defender dois Estados

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Por Redação
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Em tempos em que a literatura, muitas vezes, se assemelha a um campo de travessuras verbais insossas, com pouco esforço de articulação entre experiência e imaginação do autor, é um alento deparar-se com um romance denso e coeso como Judas, do escritor israelense Amós Oz. 

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Da leitura dessa obra emana o perfume e a sonoridade da Terra Santa, espaço de referência para as três grandes religiões monoteístas (Judaísmo, Cristianismo e Islamismo), sem nenhum ranço didático ou caricatural, fundindo-se naturalmente com a modernidade. 

A trama se passa em Jerusalém, em 1958, dez anos após a fundação do Estado de Israel.

Shmuel é um jovem universitário israelense, que busca uma forma de refugiar-se de seus tormentos emocionais (a ruptura de um namoro) e de seu fracasso acadêmico (é obrigado a interromper uma tese sobre a vida de Jesus, sob a ótica dos judeus, por falta de recursos financeiros, devido à falência da empresa de seu pai, que o ajudava). 

Oz. Autor faz uma ousada avaliação da história de Judas Foto: Avner Shahaf/The New York Times

Para tanto, propõe-se a cuidar de Wald, um intelectual fisicamente inválido, mas mentalmente lúcido, que perdera seu filho Micha na Guerra da Independência, em 1948, e condena todas as crenças e ideologias salvacionistas, embora simpatize com a figura de Ben Gurion, líder da causa sionista e primeiro chefe de governo do Estado de Israel.

Na medida em que o romance se desenvolve, Shmuel, socialista identificado com a revolução cubana, passa a se interessar pelo ponto de vista dos árabes, que resistiram ao plano de partilha da ONU, segundo o qual a Palestina, ainda sob mandato britânico, seria dividida em um Estado árabe e um Estado judeu.

Mais do que motivado por uma simples rebeldia juvenil, o estímulo para essa nova perspectiva acaba por vir, sobretudo, da presença, na casa, de Atalia, que foi casada com Micha e que também ajuda a cuidar de Wald.

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Essa mulher misteriosa, que seduzira outros jovens que trabalharam para Wald, é filha de Abravanel, um ativista do movimento sionista, que se contrapunha à doutrina de Ben Gurion.

Instigado pelo fato de Abravanel defender os árabes que acabariam expulsos de suas terras, de forma violenta, Shmuel passa a querer conhecer minuciosamente as ideias e os feitos desse homem, mas o que mais consegue descobrir é que pesa sobre ele a pecha de traidor de seu povo e que terminara seus dias na mais absoluta solidão.

O fato é que essa revelação acaba por inspirar Shmuel em relação ao seu trabalho acadêmico, fazendo-o valorizar a figura de Judas, conhecido, desde a antiguidade, como o discípulo que traiu Jesus, mas que, no novo entendimento do jovem, era o que mais compreendia e amava o mestre.

Nota-se, aqui, como o próprio Amós Oz se expõe nessa ousada interpretação da história de Judas, já que é considerado, por muitos, em Israel, um traidor, por defender a coexistência de dois Estados distintos na região. 

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Para além do engajamento político de Judas, empolgante por sua ampla visão histórica, destacam-se os planos narrativos da obra, que se interligam por meio de uma escrita reflexiva, que nos faz compreender o presente à luz do passado - ainda que esse passado remonte aos tempos bíblicos. 

Ao seguirmos a aventura do estudante que questiona a todos, e que por muito pouco se emociona, acabamos por testemunhar sua iniciação amorosa com Atalia e sua amizade crescente com Wald. É quando os conflitos entre judeus e árabes se transmutam nos abismos insondáveis que aproximam homens e mulheres.

Por outro lado, a resistência de Atalia em se envolver com Shmuel bem como a dificuldade de Wald em manifestar seu afeto pelo jovem fazem-nos compreender como a nossa capacidade de amar pode ser minada pela guerra. Contudo, Amós Oz, ao término do romance, insinua que as divergências da Terra Santa, onde o ódio não se faz de rogado, podem vir a ser transpostas um dia, embora de forma ainda desconhecida por nós. JUDAS Autor: Amós OzTradução: Paulo GeigerEditora: Companhia das Letras (368 págs., R$ 44,90)DRAMATURGO E DIRETOR TEATRAL. AUTOR DE "O FINGIDOR" E "AS FOLHAS DO CEDRO", ENTRE OUTRAS

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